Aguardente de anis e feliz por um triz ...

 



(crônica originalmente publicada no DOM TOTAL em (clique aqui)


Ricardo Soares*


Subindo e descendo, em outros tempos, num vapor nem tão barato, o vasto rio Magdalena na Colômbia, encerro finalmente a leitura tardia de O amor nos tempos do cólera, do sempre magistral Gabriel Garcia Márquez, mais uma vez aborrecido por ter demorado tanto a chegar a esse magnífico porto literário.

O motivo da relativa demora em concluir o livro nesse momento pandêmico deve-se ao fato de que leio mais de um livro ao mesmo tempo e porque não queria que a encruada história de amor entre Florentino Ariza e Fermina Daza acabasse logo. Cada página, cada dobra temporal do livro, é um alumbramento e nunca é tarde pra dizer que trata-se sim de um romance fundamental para entender as belezas do mundo, as incongruências e paradoxos do amor e da memória que, ao fim e ao cabo, acabam sempre por se entrelaçar.

A Colômbia é um país magnifico que guarda muito mais semelhanças com o Brasil do que imagina nossa vã filosofia e lá tive a oportunidade de estar inúmeras vezes, a maioria delas profissionalmente, para tentar mostrar a origem de tantos conflitos internos que retratei num documentário que hoje está disponível no Vimeo.

A derradeira vez que lá estive, em janeiro de 2019, foi justamente para conhecer um pedaço caribenho do país que incluiu Cartagena, Santa Marta, Minca e obviamente a Macondo de Garcia Márquez, que no mundo real chama-se Aracataca e ainda hoje guarda muitas semelhanças com o universo fictício de seu filho mais ilustre.

Fui à casa onde Garcia Márquez nasceu, encontrei por acaso um restaurante muito bom na cidade que ele frequentava, conheci um menino que sabe tudo do autor colombiano e transpirei com o mesmo calor pegajoso que vemos nos seus livros incríveis. Das viagens que fiz ao país, sempre trouxe aguardentes de anis, que para nós tem um gosto esquisito, mas com a qual me habituei nas minhas estadas por lá. Algo muito próximo ao Pastis (sem diluir) tão apreciado por alguns franceses e imigrantes do mundo árabe que vivem na França.

A derradeira garrafinha com o derradeiro gole de aguardente (com o sugestivo nome de Nectar) jazia dentro do meu combalido barzinho há muitos anos, muito antes da minha viagem a Cartagena e adjacências. Talvez que não tivesse tomado o último gole para não esquecer esse gosto tão colombiano ou, talvez, estivesse esperando a ocasião propicia para fazê-lo, o que aconteceu por esses dias quando cheguei, inebriado, ao ponto final de O amor nos tempos do cólera, onde, por incrível coincidência, os tardios amantes finalmente se entregam ao amar definitivo depois dos eflúvios provocados por um pilequezinho de aguardante de anis. Com tudo isso fui feliz por bem mais que um triz.

Gabriel Garcia Márquez é daqueles escritores que deviam ser proibidos de morrer pelas leis da natureza. Na verdade, não morreu e isso é obvio. Só parou de produzir coisas novas. E nos deixou muito além do legado de ter produzido obras primas da literatura mundial. Tem o raro poder de nos fazer tomar um derradeiro gole de uma derradeira garrafa de aguardente de anis para comemorar tardiamente os seus feitos inseridos em uma das mais lindas histórias de amor que já li na vida. Ler O amor nos tempos do cólera na época do "desamor nos tempos da Covid" é uma experiência única, necessária, transcendental que vai muito além das fronteiras colombianas reais e imaginárias.

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