Despudorada exposição pública das vísceras
Tenho saudades do meu pai e tenho saudades da minha mãe
e saudades de outro tempo onde eu não tinha saudades
tenho saudades do tempo onde eu acordava e via o meu filho pequeno
e saudades de por a cabeça no sereno quando o tempo escorria de outro jeito
tenho saudades da vasta amplidão do meu peito
onde cabiam mais amigos e menos desafetos
tenho saudades das crônicas antigas,
das minhas infantis dores de barriga
de um tempo onde eu enxergava meu futuro
sob uma parreira de uva
tenho saudades de um tempo onde eu não me envergonhava como agora
de dividir essas lembranças com vocês
tenho saudades de velhos noticiários do rádio,
das mãos que seguravam as de meu pai
do vai e vem dos amores da infância
do jeito romântico que eu sonhava com a palavra
da minha inquietação juvenil que no fundo me tocava
fazendo a poesia mesmo ruim ter o vigor da ereção
da propulsão
a quentura do fogo, a força da lava
tenho saudades de não ter vergonha de rimar
de um tempo nem tão antigo
onde eu vi o homem tocar o solo lunar
com o meu pai bem aqui nesse lugar
onde hoje só estão as suas lembranças
tenho saudade do tempo da escrita rude
do fundo pedregoso da represa
de peixes espinhudos que peguei
da jaboticaba madura que provei
do incêndio que , estúpido, não apaguei
também tenho saudades dos sonhos,
daqueles amarelos que na porta da escola eu comia e me lambuzava
e de outros mais remotos que eu sonhava
tenho saudades do pão quente
do pão presente que então se fazia
e de um futuro que a mim apetecia
onde eu seria tudo de grande
no limite da minha fantasia
o tempo da imagem enfim vingou
o que era doce
nem mais doce ficou
e o futuro se pra mim não acabou
futuro, enfim , não se tornou
meu pai foi embora
minha mãe está longe
e eis-me na trincheira aqui sozinho
sem ser martir
sem ser sequer um coitadinho
mas ciente do tamanho que possuo
odeio por fim o pragmatismo
esse rumo tomado, anti-romantismo
onde tecer a palavra é fazer mau jornalismo
onde as regras se soprepõe aos fatos
onde os pratos sujos não são lavados
entre os intervalos das refeições
pois come-se muito
come-se Deus
come-se a boa palavra
come-se a lógica
come-se a ética
a métrica, todos os dedos
come-se o bem, a delicadeza
a mais sensata forma de beleza
come-se a árvore
e deixa-se o cimento do pátio
então, ali no átrio eu grito :
ONDE ESTOU ?
PRA ONDE VOU ?
qual o dilema aristotélico
que tem no coração de todo aflito ?
***
Ricardo Soares, 27 de setembro , 10 e 10 da matina, experiência única de largar o pãozinho quente direto na internet
Comentários
Interessante, suas poesias são deleite à alma.. Esta em especial me emocionou e tornou meu dia melhor. Momento sensibilidade admirável... que também encontrei em "grossuras".
Grande figura vc!!!
Beijo e continue nos agraciando com seus "escritos" e "descritos"!
Também tenho saudade de muita coisa que ficou para trás...
Beijo
Um beijo.
Vivo na cidade de Buenos Aires.
Se necessitar de um correspondente sem experiência, temos.
Parabéns pelo pão quentinho.
Isiara
Lindo texto!
Passando pra desejar uma ótima sexta feira, e um maravilhoso fim de semana!
Posso reproduzir no meu blog?
Acumulamos saudades, como acumulamos idade. A cada ano, lembramos mais e mais e a saudade aumentando mais e mais. Na velhice, morrer de saudades!
Bom fim de semana! Beijus
Nossa... fiz uma volta a infancia... e me lembre de uma propaganda... calma... nasci publicitaria assim como nasces-te jornalisma... mas vc se lembra de um filme com o Chico Anisio dizendo que a vida deveria começar aos 90 e o tempo deveria regredir... é... certamente dariamos valores diferentes as coisas... Agora pode bater... hahaha...
Beijos Mila
Fiquei muito contente com sua visita em meu blogger...realmente é viciante para mim ler Caio e também Quintana, é um dos meus favoritos, dentre outros gênios dos sentimentos escritos.
Gostei de todas as suas saudades, algumas já senti, outras não, mas me trazem nostalgia de um tempo que talvez já tenha vivido, quem sabe em outros tempos.
"odeio por fim o pragmatismo
esse rumo tomado, anti-romantismo"
Eu também odeio!rs.
Ah, e não deixe de me visitar...
Abraço,
Renata