ÚLTIMA NOS 48
Tenho quase certeza que é desde os 16 anos que escrevo as minhas "últimas". Me explico : horas ou até minutos antes de fazer aniversário, o que não curto , eu escrevo as minhas "últimas" impressões com aquela idade que vai deixar de existir. São , pois, mais de três décadas de "últimas" inúteis, algumas perdidas nos meus amontoados desorganizados de escritos. As "últimas" ( parodiando Arthur Bispo do Rosário)são os registros de minha passagem sobre a terra e não tem a menor importância a não ser para mim mesmo pelo fato de serem apontamentos muito intimos e pessoais e eu ser um escritor menor num país menor, numa época em que escrever não tem a mesma importância. As minhas "últimas" me dão a impressão de que , pretensiosamente, de alguma forma, eu possa estar fazendo um diário anual , resumindo, momentos anos de fazer aniversário, as sensações que vivi no ano anterior. Ou pelo menos o que estava condensando no último dia de certa idade.As sensações e impressões vividas no ano que passou. Chega de explicar senão vou complicar. Como esse é o primeiro ano de minha vida em que possuo um blog vou dividar minha "última dos 48" com os amáveis prováveis leitores. Deixo , para ilustrar, a imagem de uma retroescavadeira que se não é poética ao menos define meu estado de espírito atual. Essa "última" , nesse ano, está mais genérica e menos intima e pessoal. Por isso tá valendo. Espero não te-los decepcionado até porque isso aqui ficou mais com cara de "querido diário" do que outra coisa. Mas um blog também não é uma espécie de diário de bordo , registros de nossa passagem sobre a terra ? ÚLTIMA NOS 48
Olho para trás e não vejo. E tenho aqui para mim que se não vejo é muito mais pela miopia do que pela incapacidade de enxergar. Não me vejo entre fraldas brincando no jardim da casa do meu avô nem me vejo destruindo um urso sujo de pelúcia . Também não me vejo arrancando a casquinha de uma ferida após um tombo de bicicleta e nem me vejo mais sonhando ser poeta, atleta, o moço da motocicleta.
Olho para trás e não vejo meu avô a preparar rabanadas e nem vejo minha avó a me forçar a tomar sopa de ervilhas. Não vejo a areia que joguei nos olhos de outro menino e meu coração miudinho rejeitado num salão de baile. Não vejo pois minha falta de traquejo, não vejo a serra que contornei na neblina, não vejo o cavalo que não domei e do qual cai , não vejo a represa turva de tilápias , não vejo a temperatura do meu corpo subindo, subindo, subindo.
Olho para trás e não vejo poesia, nem vejo apólogo brasileiro sem véu de alegoria . Estou mais próximo da lira dos cinqüenta anos da qual falava Manuel Bandeira e minha saudade é uma enorme retroescavadeira a aparar os barrancos da vida .
Olho para trás e não vejo a touceira de mato junto à qual meus pais estão sepultados e nem vejo a claridade do dia em que meu filho nasceu me jogando em outras luzes do mundo. Não vejo os dias que quebrei meu dedo jogando basquete, nem o dia que me escondi dentro de uma manilha gigante ou o dia que, sabotador, mijei dentro de uma bateria de caminhão que destruía nosso campinho de futebol.
Olho para trás e não vejo minha infância, nem a mesa de fórmica vermelha, nem o sagu de sobremesa , nem a porta de tela que separava a cozinha das moscas do quintal. Não vejo a parreira de uvas , os canarinhos despenados, meus calçados furados nos dias de muito frio.
Não, por favor, não me vejo um senhor prestes a completar 49 anos. Na verdade acho que não cresci se crescer significar representar, tripudiar, enganar, desconsolar. Confesso que não ando lá muito otimista mas é que apesar de sufocar uma certa aspiração de artista eu ainda acho que a criação, seja ela qual for, ainda é a mais divina das manifestações humanas.
Olho para trás e não vejo o menino que aprendeu. Vejo o tiozinho que perdeu o fio da meada, aquele tipo que procura uma jóia que perdeu no meio fio. Assim , sem outra opção além de mirar a calçada, fico imaginando que a enxurrada que desce lava todas as impurezas e leva para o mais fundo dos fundos esgotos as minhas certezas.
Ricardo Soares
7 de junho de 2008 - 18 e 20
Olho para trás e não vejo. E tenho aqui para mim que se não vejo é muito mais pela miopia do que pela incapacidade de enxergar. Não me vejo entre fraldas brincando no jardim da casa do meu avô nem me vejo destruindo um urso sujo de pelúcia . Também não me vejo arrancando a casquinha de uma ferida após um tombo de bicicleta e nem me vejo mais sonhando ser poeta, atleta, o moço da motocicleta.
Olho para trás e não vejo meu avô a preparar rabanadas e nem vejo minha avó a me forçar a tomar sopa de ervilhas. Não vejo a areia que joguei nos olhos de outro menino e meu coração miudinho rejeitado num salão de baile. Não vejo pois minha falta de traquejo, não vejo a serra que contornei na neblina, não vejo o cavalo que não domei e do qual cai , não vejo a represa turva de tilápias , não vejo a temperatura do meu corpo subindo, subindo, subindo.
Olho para trás e não vejo poesia, nem vejo apólogo brasileiro sem véu de alegoria . Estou mais próximo da lira dos cinqüenta anos da qual falava Manuel Bandeira e minha saudade é uma enorme retroescavadeira a aparar os barrancos da vida .
Olho para trás e não vejo a touceira de mato junto à qual meus pais estão sepultados e nem vejo a claridade do dia em que meu filho nasceu me jogando em outras luzes do mundo. Não vejo os dias que quebrei meu dedo jogando basquete, nem o dia que me escondi dentro de uma manilha gigante ou o dia que, sabotador, mijei dentro de uma bateria de caminhão que destruía nosso campinho de futebol.
Olho para trás e não vejo minha infância, nem a mesa de fórmica vermelha, nem o sagu de sobremesa , nem a porta de tela que separava a cozinha das moscas do quintal. Não vejo a parreira de uvas , os canarinhos despenados, meus calçados furados nos dias de muito frio.
Não, por favor, não me vejo um senhor prestes a completar 49 anos. Na verdade acho que não cresci se crescer significar representar, tripudiar, enganar, desconsolar. Confesso que não ando lá muito otimista mas é que apesar de sufocar uma certa aspiração de artista eu ainda acho que a criação, seja ela qual for, ainda é a mais divina das manifestações humanas.
Olho para trás e não vejo o menino que aprendeu. Vejo o tiozinho que perdeu o fio da meada, aquele tipo que procura uma jóia que perdeu no meio fio. Assim , sem outra opção além de mirar a calçada, fico imaginando que a enxurrada que desce lava todas as impurezas e leva para o mais fundo dos fundos esgotos as minhas certezas.
Ricardo Soares
7 de junho de 2008 - 18 e 20
Comentários
Falamos amanha.
!
!
Eu acho.
"Soma as tuas facilidades,revisa as bençãos que usufruis,enumera as vantagens e os tesouros de afeto que te coroam todos os dias e socorre aos companheiros desfalecentes da estrada, buscando soerguê-los ao teu nivel de entendimento e conforto" (Chico Xavier)
Serás Feliz... Um ótimo Ano Novo (49)
E "ao não se ver", desnudou-se belamente.
Feliz aniversário.
Beijo...
"eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim."
Torquato Neto
Não é pra trás que se olha em momentos assim, é pra dentro!
Se não sabes: tu cresces pra dentro!
E dentro, tenho certeza, bate um coração com algumas cicatrizes, mais forte e que ainda tem muito pra crescer!
Um grande beijo!
E fôlego pra assoprar as velinhas!
E pra criar mais "últimas"!
Parabéns!!!
Não se esqueça de que as "últimas" serão as primeiras.. srrsrs
muito carinho meu para vc!!
beijos
Adorei a idéia de escrever "as últimas". Posso copiá-lo? Fiquei com vontade de fazer igual. Que grande maneira de terminar um ciclo e dar início a outro. Adorei.
Ah! Feliz Aniversário! E que muitos outros venham.
Com 48 anos, o Ricardo menino ainda está aí. Parabéns!
nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé
certezas o vento leva
só dúvidas continuam de pé
paulo leminsky
um abraço
May
Me parece em "Sua Última nos 48", que está com medo. Perdoe-me se me engano, mas, do pouco que te conheço, sei que me entenderás que acredito que medo é para os fortes. Os fracos não se amedrontam porque desconhecem os riscos. E, se vi um certo medo no seu texto é porque você sabe que quando se passa de uma fase a outra é possível perder. E há medo em perder as boas coisas que, ainda, sobram em nós. Assim, no seu caso, das lembranças de sua infância, e outras situações do seu mundo.
Entender essas mudanças e saber mudar com elas também são tarefas dos "bravos". Acho que usou bem a imagem da retroescavadeira. Não por sua fortaleza, mas, pelo cárater de desbravar, sempre, terras na busca do novo, do que virá. E, você faz isso, como sempre mostra aqui, no seu "Todo Prosa". Sempre em busca do novo.
Do contrário meu querido, você deveria curtir seu aniversário, alguém que desbrava o mundo só tem que se orgulhar, ainda que sejam de suas dores.
E não se preocupe, se quiser, e sei que quer, será sempre menino, com 20, 30, 49 ou 60. O segredo não está no corpo e sim na alma.
agora chega que esse comentário está ficando muito piegas...rs..rs..rs..rs...
ando meio piegas ultimamente.. sorry..rs..
Bem-vindo aos 49, que esse novo ano tenha muitas emoções para você.
E que todos os seus DESEJOS se realizem. Sempre torço para que as pessoas, que conheço ou não, realizem seus desejos. Até aqueles que não temos coragem de contar em voz alta. ;)
Um beijo e Feliz Aniversário.