DO OUTRO LADO DO FOGO
Viajo as duas da tarde para o Rio. E para que não fique aqui no blog esse astral de apenas falatório sobre figuras públicas execráveis deixo um conto ( crônica ?) inédito para deleite ou tortura dos leitores. Dessa vez vai uma versão completa visto que é curtinho.
DO OUTRO LADO DO FOGO
Ainda respiro. E vi teus olhos do outro lado da fogueira antes de achar que estava morrendo. O que está acontecendo ? eu estava febril ou todo o tempo estava quente naquela noite fria quando vi teus olhos do outro lado da fogueira ?
Tenho saudade e este sentimento pesa. Saudade da tua gengiva alta que aparecia mais que os dentes à beira de um sorriso. Saudade da volta que demos, todos nus, ao redor do campo de pouso, saudade do teatro primal, dos rituais de iniciação, da mistura de vinho barato com pinhão e amendoim, do fusca à álcool que não pegava, da comida em volta da mesa, da pizza fria, da dor da obturação, das prestações infindáveis dos móveis baratos , dos quindins amanhecidos e dos sorrisos na varanda.
Ainda respiro e meu nariz escorre mais por nostalgia de corizas passadas do que pela umidade do presente. A umidade já não me afeta .Nem o mofo, o bolor , os ácaros e bichos do ar. Tanto faz se tenho pulmões vazados ou pleno fluxo de respiração. Tanto faz se ainda respiro pó, fuligem , pólen. Mas se eu respiro eu levito. Se levito eu sobrevôo . Se eu sobrevôo me alço a libélula, louva- a –Deus , mariposa barata . Pouso em planta, em folha, flor, esterco. Não cheiro nada. Sinto, não toco. E sem tocar em nada me vem a saudade de quando a fogueira arde, quando o velho atinge o cume, quando a mão encosta na cidreira, quando a grama volta a crescer, quando a forca dá em nada e quando o carrasco padece.
Sucede que o mundo cresce e eu não me tanjo. Gado velho esquece do tamanho do pasto e cai em valas, vilependia pernas, aumenta os hematomas, dá trabalho aos especialistas em saúde. Assim vejo a fogueira e tusso. Assim vejo a fogueira e pigarreio. Assim me incendeio e te vejo do outro lado. Se está quente – os nossos pulsos também ? – é porque respiro. Se respiro interfiro, sintonizo , arremato, mando sinais vitais aos que acham que eu “vareio”. Sou um neto de Guimarães Rosa , um produto do meu lixo, um caminhão cheio de ouriços, uma navalha cega, um verso esquisito de Bocage, uma ponte que ruiu , uma bocada insensata , uma equação errada, um botijão que explodiu porque esteve ali, sempre do outro lado da fogueira. E através dela viu teus olhos mas jamais os enxergou. Ao ter certeza disso tenho certeza de que não mais respiro. Mas estou em paz.
***
Ricardo Soares
07/07/03 , avenida Paulista, Sp.
DO OUTRO LADO DO FOGO
Ainda respiro. E vi teus olhos do outro lado da fogueira antes de achar que estava morrendo. O que está acontecendo ? eu estava febril ou todo o tempo estava quente naquela noite fria quando vi teus olhos do outro lado da fogueira ?
Tenho saudade e este sentimento pesa. Saudade da tua gengiva alta que aparecia mais que os dentes à beira de um sorriso. Saudade da volta que demos, todos nus, ao redor do campo de pouso, saudade do teatro primal, dos rituais de iniciação, da mistura de vinho barato com pinhão e amendoim, do fusca à álcool que não pegava, da comida em volta da mesa, da pizza fria, da dor da obturação, das prestações infindáveis dos móveis baratos , dos quindins amanhecidos e dos sorrisos na varanda.
Ainda respiro e meu nariz escorre mais por nostalgia de corizas passadas do que pela umidade do presente. A umidade já não me afeta .Nem o mofo, o bolor , os ácaros e bichos do ar. Tanto faz se tenho pulmões vazados ou pleno fluxo de respiração. Tanto faz se ainda respiro pó, fuligem , pólen. Mas se eu respiro eu levito. Se levito eu sobrevôo . Se eu sobrevôo me alço a libélula, louva- a –Deus , mariposa barata . Pouso em planta, em folha, flor, esterco. Não cheiro nada. Sinto, não toco. E sem tocar em nada me vem a saudade de quando a fogueira arde, quando o velho atinge o cume, quando a mão encosta na cidreira, quando a grama volta a crescer, quando a forca dá em nada e quando o carrasco padece.
Sucede que o mundo cresce e eu não me tanjo. Gado velho esquece do tamanho do pasto e cai em valas, vilependia pernas, aumenta os hematomas, dá trabalho aos especialistas em saúde. Assim vejo a fogueira e tusso. Assim vejo a fogueira e pigarreio. Assim me incendeio e te vejo do outro lado. Se está quente – os nossos pulsos também ? – é porque respiro. Se respiro interfiro, sintonizo , arremato, mando sinais vitais aos que acham que eu “vareio”. Sou um neto de Guimarães Rosa , um produto do meu lixo, um caminhão cheio de ouriços, uma navalha cega, um verso esquisito de Bocage, uma ponte que ruiu , uma bocada insensata , uma equação errada, um botijão que explodiu porque esteve ali, sempre do outro lado da fogueira. E através dela viu teus olhos mas jamais os enxergou. Ao ter certeza disso tenho certeza de que não mais respiro. Mas estou em paz.
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Ricardo Soares
07/07/03 , avenida Paulista, Sp.
Comentários
É sério!
;)
Gostei deste texto também. Mandou muito bem, pra variar.
abs
Mas, claro, é só uma opinião não descolada, não balizada, e acima de tudo, desinteressada.