Ver os cães dormirem ao sol
Ver os cães dormirem ao sol
Estou aqui nesse caverna feita pelo meu sono
encolhido,imóvel,cansado
a assuntar borboletas escuras que pousam no meu destino
a prescrutar armadilhas feitas pelo desatino
e me sinto confortável porque parei de dar velocidade aos meus dias
parei pra ver os cães dormirem ao sol
e ver que nada daquilo no qual as pessoas crêem tem de fato importância
Parei pra ler Pessoa de novo
e me encantar com as formigas
parei pra sentir que o tempo passou
e que o passado naufragou pois ninguém se lembra dele
parei pra saber que o que importa agora
é o sem importância
parei pra saber que meu credo é a descrença alheia
ou a descrença alheia me faz gritar “credo em cruz”
parei pra saber que vivem a bolir com o sagrado coração de jesus
e que as evidências todas apontam para o meu país
como uma gangue de corruptos, falsários, bucaneiros ligeiros
a se passar por modernos e eficientes
amontoados em corporações decadentes
parei pra saber que o poema se reinventa ao sabor do momento
é que ninguém lê mais poesia
a não ser pra fazer caricatura de declaração de amor
parei para saber que o despudor é uma arma
para se passar por emancipado
e que o moralismo é o refúgio dos hipócritas, covardes, pedófilos e congêneres
parei para sentir saudade dos anos idos
e também, até, dos mal vividos
parei pra relembrar o quanto fomos menos populosos
quanto as estradas eram menos cheias
e a cortesia inundava relações cotidianas
parei pra ver que a brutalidade aumenta
e que a medida da civilização não é a compaixão
a compaixão não cabe nos negócios, nas salas de reuniões
nos jantares eliquentes de publicitários dormentes
a repetir replicas de si próprios com jargões em inglês
que denotam a estupidez poliglota que advogam
parei pra saber que não dou importância aos desimportantes
e que as celebridades para mim fedem e não cheiram
maçãs apodrecidas dos seus egos com malária
febris, doentes, vagamente indecentes nessa ânsia de aparecer..
parei enfim para dar risada de mim mesmo
das minhas bolsas sob os olhos
e as minhas olheiras
parei pra rir das solidões virtuais das redes sociais
parei para me emoldurar em outro quadro
sem saber que não me encaixo em nenhuma parede
parei porque me sei paisagem sombria
retrato remoto de avenidas que já não existem
e solidões que latem nas calçadas
parei pra lembrar de vulcões extintos
que expeliam lavas incandescentes nos idos dos anos 70 de um século que jaz
não é assim que se faz
parei pra saber que errei
que não dialoguei com minha própria vocação
que aPOStei no cavalo errado
e que no estaleiro tem um navio que leva meu nome
parei pra rir disso tudo
pra engasgar com minha própria palavra
pra saber que conteúdo é o nome novo que se dá ao nada a se dizer
e pra auferir que dia a dia
ninguém lê mais poesia
23 de março de 2012/ Ricardo Soares
Comentários
Bjs,
Ana
Angélica...fico feliz que não tenha se arrependido... volte sempre