Marighella : o difícil é perdoar
O mais difícil é perdoar. É a primeira frase que me vem a mente após a
conclusão da leitura do livro “Marighella-
O Guerrilheiro que incendiou o mundo” de Mário Magalhães sobre o qual por certo
muita gente batuta ( ou nem tanto) já escreveu. Não quero pois ter a menor
pretensão de estar sendo original ao escrever sobre o livraço mas por outro
lado nem de longe quero deixar passar batido.
Sou leitor contumaz de biografias e tenho
o maior respeito pelos escritores do gênero que no Brasil tem se multiplicado
em quantidade e qualidade. Mas as biografias que mais me encantam são justamente
aquelas em que os biógrafos se apaixonam pelos seus escolhidos como parece ser
o caso desse “Marighella”. Ao contrário do academicismo de alguns livros
recentes do gênero que tratam os personagens com luvas cirúrgicas o trabalho do
Magalhães mete a mão em sangue, suor e lágrimas e retrata um protagonista acima
de tudo humano, contraditório, autoritário, generoso, sectário, radical. Não o poupa das
contradições. Não o santifica mas assume clara postura favorável a Marighella o
que não constitui demérito algum ao trabalho. Antes o contrário. Daí vem a questão do perdão.
Os algozes de Marighella e seus
companheiros de guerrilha durante as
nossas várias ditaduras (sobretudo a que
foi de 1964 a 1985) foram de uma crueldade abjeta se ufanando sempre de terem
quebrado dentes e costelas, afundado crânios, dilacerado pernas e braços
matarem muitos em sessões de tortura e tocaias onde os inimigos eram eliminados
sem qualquer chance de defesa. Sempre argumentaram que estavam numa guerra e
hoje muitos posam de bons velhinhos inocentes que desfrutam de pensões
vitalícias por serviços hediondos que prestaram a um Estado desvirtuado. Se
julgam patriotas acima da lei e brandem sua reumática truculência dizendo que a
anistia devia zerar o marcador pra ambos os lados. Ok se fossemos tratar apenas
dos mortos em combate dos dois lados . Mas não é disso que se trata. Se trata
de tortura, sadismo, perversões loucas que jamais foram punidas exemplarmente.
Difícil conceder o perdão a essa escória. Se eu que nada tive a ver com isso
tenho dificuldades em perdoar essa gente reflito sobre o que pensam ainda
muitos dos que foram seviciados.
Peguei esse desvio, repito, porque a
impressão que deixou em mim esse livro é a dificuldade do perdão. Como perdoar
esses vermes que amputaram literalmente uma geração inteira ? Que expatriaram,
barbarizaram, separaram famílias , reduziram a pó a oposição armada a uma
ditadura pegajosa, corrupta e equivocada. Eu não perdoo senhores e senhoras .
Não consigo me imaginar apertando a mão de um tipo desses e me revolto ao saber
que estão por aí a tomar sal de frutas e a desfrutar do sol de Copacabana
quando mandaram tantos para valas imundas e sem identificação. Nesse quesito a
revisão do passado seria ponto de honra não só para não repetirmos os mesmos
erros mas para desencorajar as frequentes práticas nocivas de policias
militares pelo Brasil afora que torturam e matam impunemente ainda hoje.
Eu era criança quando Marighella era tido
e havido como o inimigo público número 1. Ouvia-se falar dele em sussurros ,
como um assunto ultra proibido. O pintavam como um canibal sangrento comedor de
petizes. A palavra “terrorista” assustava o meu pai, arrepiava a minha mãe. E
eu vagamente percebia movimentos esquisitos no bairro onde morava na periferia
de São Bernardo do Campo. Um dia disseram que nosso professor de educação
física jogou desde o seu Karmann Guia uma
série de panfletos. Se contra ou a favor da ditadura não sei. Só sei que ele
passou uns tempos sumido e quando voltou não tinha mais sua espessa barba e estampava
uma enorme equimose como que feita a ferro quente que sobressaia em alto relevo
no seu peito. Isso para mim é nítido até hoje.
Como sabemos a canalha venceu e muitos dos que colaboraram com aquele
lamentável período de exceção vagam por aí merecendo o respeito dos seus pares. Só para
citar dois exemplos lembremos de Sarney e Delfim Neto. Por outro lado muitos
dos que pegaram em armas naquela época para combater a ditadura se locupletaram
nos últimos anos em confortáveis cargos públicos . Conheço vários dos citados
no livro. Alguns são tão notadamente “bundinhas” e incorporados ao establishment
que eu sequer imaginei que um dia tivessem sido guerrilheiros ,mesmo que da
rede de apoio .
Muitos colegas jornalistas com quem
convivi são citados nessa história de luta armada escrita pelo Magalhães.
Alguns propagandearam sempre suas ações e outros foram tão discretos (geralmente os mais aguerridos) que eu nunca poderia imaginar que tivessem um
dia pegado em armas. Os estilos fazem os homens e as mulheres, se é que vocês
me entendem.
Devo dizer ao Mário Magalhães que sempre
me tratou com a maior deferência (independente dos amigos que temos em comum)
que aqui não escrevo uma resenha mas um rebuliço. O fiz de chofre, assim que
concluí a leitura do livro. É apenas o
relato daquilo que o livro provocou em mim. Reflexão sobre o perdão. Portanto
Mário, perdão se as mal traçadas não lhe agradarem, perdão pela despretensão e
perdão por não levar tão a sério o seu trabalho sério e disciplinado. Perdão
porque eu não me apaixonei pelo Marighella como você. Ele jamais foi meu herói
e nem creio que tenha sido o seu. No entanto a dimensão em que você o mostra
lhe empresta aura de heroísmo num país de tantos covardes. E daí vem o grande
mérito. Seu e do Marighella. Assumirem riscos de proporções distintas num país onde
ninguém arrisca nada. Marighella tomou
partido. Você, biógrafo, também tomou. E isso não diminui em nada a grandeza do
seu trabalho.
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