Ao redor de Vanzolini
Hoje vivemos o tempo do "não existe amor em
Sp" e a verve de Criolo faz suspirar as doidivanas. Mas São Paulo já teve
seu tempo de dormir de janela aberta naquela ocasião em que bondes rangiam em
trilhos, trens decentes corriam o Estado e os ladrões eram românticos escalando
telhados e roubando com jeito, sem violência.
Nesse tempo
de certa cordialidade perdida e violência de média a moderada os bêbados já
tangiam a calçada e cenas de sangue nos bares da avenida São João e adjacências
já formavam o nosso passional cartão postal quando o então soldado Paulo
Vanzolini na fina flor dos seus vinte e um anos compôs um dos clássicos da
cidade e do país . A imortal canção "Ronda".
Vanzolini
"animal de muita fama que tanto corria no charco como na vargem da
lama" , segundo ele mesmo se definia,nos deixou recentemente e nem vou
entrar no clichê de nossa orfandade pois não tenho mais idade pra isso. Tinha o
compositor bem vividos 89 anos dedicados a herpetologia ( estudo dos animais de
sangue frio) e a música popular brasileira de excelente tradição e qualidade.
Faz parte da minha trajetória de vida não só por ter sido o tema da minha
primeira reportagem publicada ( na extinta revista Música em 1977) como pela
admiração que eu devotava aos seus versos e a sua discrição. Quantas vezes,
noite alta, defronte ao museu de Zoologia na avenida Nazareth no Ipiranha eu
pensei na vida e no diretor do estabelecimento, o Vanzolini, que mergulhado nas
sombras daquele mausoléu dava sua contribuição à ciência enquanto eu aguardava
o coletivo pra São Bernardo do Campo.
Essas já
não tão tenras lembranças de adolescência me acometem em doses de extemporâneo
lirismo não só para servir de mote ao meu lamento pela perda do Vanzolini mas
também para saudar tardiamente Ricardo Dias, um talentoso colega de ofício,
documentarista e diretor do belíssimo trabalho sobre o autor de "Boca da
Noite". O documentário em questão chama-se "Um Homem de Moral" e
perdi no cinema. Agora acha-se a versão integral até no Youtube e se eu fosse
você leitor corria para assistir. O filme do Ricardo capta a essência do
humor-amor de Vanzolini não só pela Sâo Paulo que não existe mais mas pelo
Brasil que ainda resiste. É um documentário sem penduricalhos, direto e reto ao
ponto, com interpretações certeiras de alguns dos clássicos do Vanzolini. Só
senti mesmo falta do meu samba favorito dele , o tal " Samba Erudito"
onde o protagonista se curva ante a força dos fatos e lava a mão como Poncio Pilatos.
Não há como
lavar as mãos diante da obra de Vanzolini numa cidade tão árida de talentos. Ou
será que meus ouvidos andam surdos ? Sei que devo parar de procurar ecos dele e
de Adoniran pelas ruas descaracterizadas do Bixiga ou pela degradação das
cracolândias . Sei que devo me ater à realidade dos raps, grafites e pichações.
Sei que gosto de Mano Brown mas sinto falta de samba com torresmo e cachaça
tomada em balcão como o Vanzolini e o Adoniran serviam.
Tenho que
parar de me rebobinar ao passado pois brotam finas flores poéticas do asfalto.
Ao menos é o que me dizem e eu até acredito quando esbarro em sincera e pouca
divulgada produção audiovisual feita pela moçada pelos infindáveis bairros e
muquifos dessa cidade imensa.
Terra bruta,
lajes pesadas, horizontes calcinados e sem verde, trânsito apocalíptico ,
bandidos impiedosos e policiais truculentos não conseguem inspirar bons tons
para novos sambas na ex- terra da garoa. Por outro lado é mais que hora de São Paulo dizer que "reconhece a queda e
não desanima". Mais que hora de repetir o lindo surrado refrão de
Vanzolini : "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".
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