ESTILHAÇO DO ANO 70
Evocações antigas. Um velho pedaço de manjar
sobre a toalha vermelha. De mesa. Uma jarra de suco quebrada. Sobre a pia. Uma
panela de pressão com metade de feijão, metade de ar. Guardada na geladeira. Um
fogão à beira da exaustão. No chão respingos de pinga. Nenhum grito parado no
ar. Nos anos 70 tudo parecia andar mais devagar. No muro que dá para a casa
vizinha cresce uma samambaia. Uma parreira de uvas está secando acima do piso
de cacos de cerâmica enquanto um japonês do outro lado da rua estuda
contabilidade para passar em um concurso público.
Cai um sereno frio, cachorros baldios latem
para os postes com pouca luz e duas mães padecem de bronquite pois as fábricas
estão muito perto. Há um rádio ligado ao longe. Outro rádio ligado mais perto.
Não estou muito certo de que idade eu tenho. Um primo longínquo já faz a barba
e de duas primas brotam seios nos seus peitos. Não entendo nada. Só que me
dizem que a pátria é amada e que os cegos não enxergam mesmo a luz.
Passei, talvez ontem, por um buraco cheio de
carros que me leva ao outro lado da cidade. Uma zona que é a norte e não é
minha. Ali , num prédio entre muitos prédios, esconde-se um tio triste com sua
família triste e amuada. Ali tomamos chá e comemos bolo de fubá. Então, de
repente, rojões foram ouvidos e cachorros correram pra baixo da mesa. Soube que a festa era no México mas era como
se um gol decisivo fosse feito aqui. Recolhi minhas lembranças num saco cheio
de aniagem e agora as depositei sobre esse balcão. Afinal não sei se comemoro
ou se choro.
Ricardo Soares, 27 de junho de 2014
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