O AMOR NOS TEMPOS NÃO CATÓLICOS
A janela que
deveria correr estava emperrada. Assim não podia ver mas imaginava aquela
mulher atravessando a avenida movimentada, dançando entre os carros. Não
dançava na verdade. Titubeava porque a partir daquela manhã um mundo novo se
desabria ao sabor do desalento . Era preciso recomeçar de um ponto novo. A
partir do rompimento. E aí começava o tormento que pouco combinava com o sol
que se erguia atrás dos edifícios.
O mundo parecia cantar em volta, mesmo
com o barulho dos carros . Ela achava injusto porque a aparente alegria não
combinava com sua apatia. Ela chorava inteira enquanto uma senhora regava a
calçada,um cão urinava, um homem arrumava uma janela , uma criança loira sorria
e entrava na perua que a levaria para a escola.
A noite dela foi mal dormida. Aliás nem
dormiu. Pressentiu no jeito como ele respirava que nada ia bem. Percebeu que um
certo resfolegar não era ausência de cigarro, vontade de vermute ou precisão de
Coca- Cola. O que ela queria em meio ao desalento era apenas uma canção
singela. Mas tanto ele como ela
desafinavam sempre.
Agora, do outro lado da avenida, em uma
cena que ele não via atrás da janela emperrada ela simplesmente sentou-se à
beira da calçada. Literalmente uma bela mulher na sarjeta. Olhou para cima,
colocou seus óculos escuros e se arranhou por dentro. Que valia teria chorar a
essa altura ? A questão seria agora como deixar de latir já que não escondia a tentação de se achar,
ali mesmo, apenas e tão somente uma cadela na calçada.
Para os próximos dias não estava
previsto nenhum eclipse, nenhuma grande tormenta e a neve ,ora a neve, ela
nunca deu o ar de sua gelada graça por aqui. Queria simplesmente se esquentar
mas não tinha grana para o conhaque e da padaria , logo ali do lado, saia
apenas um cheiro de pão quente. Se nenhuma grande transformação meteorológica
estava por chegar restava apenas ficar árida assim. Seca total. Sem desaguar.
Todos os dias por essas tantas ruas,
avenidas, alamedas, praças, bulevares os desencontros do amor são atropelados
pelo rolo compressor das quinquilharias do dia a dia. Elas não dão espaço para
os pequenos dramas que dilatam as veias, comprimem os ossos, fazem o peito
inchar tamanha a ansiedade. É só nisso que ela pensava enquanto lá em cima ele
tentava desemperrar a janela para ver a cena que apenas imaginava. Mesmo que se
passassem muitos anos eles intuíam que nada poderia dar certo. Mas o que
importa isso agora, no calor da hora ?
Lá dentro ele acabou por esquentar a
água para o chá. Sentou-se na tosca e remendada cadeira, bebeu devagar e
adivinhou o calendário. Seria uma data que jamais esqueceria. Ali sabia que
selava, com drama, seu destino de preciso aprender a só ser. Assim, para não perder o costume, roeu uma
das unhas, lembrou da mãe há muito falecida e pensou em nossa senhora de
Fátima. Lá embaixo ela, por fim, levantou-se ,arrancou a medalhinha de São Francisco de Assis que
tinha pendurada ao pescoço, presente dele, e jogou muito longe na tentativa vã
de esquecer tudo rapidamente. Por fim
pegou um ônibus quase cheio que a levaria para longe e nunca mais o viu muito embora o que se passou naquele dia
nunca mais desembarcasse de sua vida.
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