COM JULIO CORTAZAR E MARCOS FAERMAN
Mês
e meio atrás, tarde nublada, me
curvei numa espécie de aplauso
silencioso diante do túmulo de Julio Cortazar e sua companheira Carol Dunlop no
cemitério de Montparnasse , Paris. Cortazar, autor fundamental não apenas na literatura
latino americana mas na literatura mundial de todos os tempos e que descobri aos 16 anos ao ler um exemplar de "Todos os fogos, o fogo" com chamas na capa, publicado pelo extinto "Círculo do Livro".
Diante
daquele túmulo modesto, econômico, quase espartano, fiquei imaginando as muitas
vidas vividas por Cortazar pra produzir literatura tão inquietante, tão
inventiva, tão inimitável. Fiquei imaginando que ruas de Paris teria percorrido
,em que cafés havia entrado, quantos vinhos tinha bebido, quantas alegrias e
tristezas havia vivido na cidade que ele tanto amou e que o fez deixar para
sempre sua Argentina natal muito embora tenha nascido na Bélgica. Em Cortazar
até as poéticas imprecisões sobre nascimento e morte parecem fazer parte de sua
literatura. Ele mesmo dizia: “Nasci em
Bruxelas, no dia 26 de agosto de 1914. Signo: Virgem. Meu planeta é Mercúrio e
minha cor é o cinza (ainda que, a bem da verdade, eu prefira o verde). As
circunstâncias do meu nascimento não foram extraordinárias, mas um tanto quanto
pitorescas: nasci em Bruxelas como poderia ter nascido em Helsinque ou na
Guatemala.”
Diante daquele túmulo mais uma vez me
certifiquei da dimensão da minha pequenez,da minha presunção ( ainda bem que contida)
em imaginar que eu possa fazer algo que chegue minimamente aos pés do que
Cortázar fez. Diante daquele túmulo ou diante de obras como a de Cortázar
sempre tenho impressão de que nada mais existe para ser dito e me encho de
piedade por mim mesmo e por outros autores brasileiros – que se julgam
importantes- que debatem esterilidades e disputam bocas livres para a mesma Paris
de Cortazar sem se dar conta do quanto são ( somos) pequenos.
Naquela tarde recente diante do túmulo
de Cortazar e Dunlop -onde escritos a caneta sobre a lápide e uma flor seca e
amarela homenageavam aqueles mortos- eu
mais uma vez me certifiquei de que ser imortal é isso, receber esses
reconhecimentos, e não as glórias mundanas dessas academias decadentes que
glorificam subliteratos e cheiram a naftalina. Naquela tarde, como já disse
outra vez, queria que ele e alguns outros naquele cemitério levantassem um
pouco do sono eterno para me dar a honra de meio dedo de prosa num café
imaginário.
Só que mês e meio atrás eu não sabia
que Cortázar tinha ido a um show de Maria Bethânia no Tuca em 1975 , que
proseou num bar ali perto da Puc paulista e que passou completamente incognito
lendo seu jornal no aeroporto de Congonhas enquanto a patuléia urrava por Hebe
Camargo. Sabia sim que Cortázar tinha vindo ao Brasil e em São Paulo mas
desconhecia detalhes que me chegaram através do mais belo texto sobre Cortázar
que já li na vida , escrito por um dos melhores repórteres que já conheci na
vida e que também já se foi : Marcos
Faerman. (Clique aqui)
Uma das agradáveis surpresas de minha volta foi que ao surfar pelo acaso
internético me dei conta essa semana de um belo “sítio” que registra vida e
obra do Marcão. Uma iniciativa que eu
desconhecia , que cumprimento quem a fez e que compartilho agora ainda
mais nessa época em que o jornalismo que Marcão praticava e no qual acreditava está morto e enterrado.
O “sítio” é uma beleza e traz inúmeros textos de Marcos Faerman como o que narra
o seu encontro com Cortázar e do qual roubei a expressão que abre esse meu
texto, o tal “aplauso silencioso”.
Nos tempos indefiníveis em que vivemos,
espinhosos , pouco lúdicos e pouco ternos, Cortazar e Marcão são exemplares
indispensáveis para que atravessemos os cabos de péssimas tormentas e continuemos acreditando que , sim , a arte
é a manifestação de Deus nos homens. Ler quem escreve bonito é um bálsamo
danado e me faz seguir acreditando que vale seguir lutando contra minha
distimia. Vale crer que um dia surgirão, ou pelo menos terão a divulgação que
merecem , novos Cortazar e novos Faerman de quem não falo mais para convidá-los
a navegar por seu “sítio” que traz todas as informações a respeito sem falar
nos viscerais textos.
Antes de encerrar só quero ser
auto-referente pra tentar resumir o que pensava e penso de Marcão, um tipo
dificil como homem e profissional como talvez sejam todos aqueles atormentados
por tanto talento e indignação. Marcão era uma estrofe de “Guantanamera”. Um
homem sincero. Pelo menos foi para mim. Na nossa ex-profissão ( visto o
jornalismo estar extinto) poucos são os
colegas generosos . Críticos para te esculhambar não faltam , generosos pra te
motivar ou apontar críticas honestas são poucos. Marcão era tudo isso.
Na minha primeira passagem pelo CADERNO 2 do Estadão (que completou 30 anos por esses dias) eu fui
repórter especial de abril de 1986 a começo de 1988 se não me falha a
memória.A função me dava uma relativa autonomia pois eu próprio podia propor minhas pautas ao
editor e converte-las em reportagens além de cumprir as pautas sugeridas .
Muitas “reportagens culturais” longas que escrevi foram elogiadas por telefone
ou ao vivo pelo Marcão (que atravessava
os corredores desde o JT para falar
comigo) com a mesma enfâse com que muitas vezes me detonou . Ao vivo ou por
telefone. Sempre tive excelente e calorosa interlocução com ele embora não
fossemos necessariamente amigos mas colegas de trabalho. De algumas dessas
conversas calorosas ( tanto na redação onde ainda se fumava a vontade quanto na
lanchonete do Estadão) também
participaram o saudoso Caio Fernando Abreu, gaúcho como o Marcão.
Marcos Faerman lia jornais o tempo
todo. Lia os colegas, os amigos, os desafetos. Leu muita literatura de primeira
categoria e era do ramo. Por tudo isso estava à altura dos dois metros de
Cortazar para debater o que fosse com o escritor de multiplas facetas e
nacionalidades. Diante disso tudo desnecessário dizer o quanto Cortázar e
Marcão nos fazem falta. Pelo menos a mim e tantos outros que saberiam discernir
e dar a devida importância, num aeroporto de Congonhas lotado num dia de 1975,
quem era o gigante Cortázar e quem era a animadora de celebridades que
provocava histeria. Com todo respeito à “gracinha” Hebe Camargo.
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Abraço. Grandão.