ALÉM DE USHUAIA
Ele poderia viver lá embaixo,
além de Ushuaia, longe das notícias ruins, perto dos pinguins , a procurar pés
de romã entre as fendas da neve ou
vestígios de vida intergalática entre as miúdas pedrinhas dos caminhos. Ele
poderia viver lá embaixo, vizinho do frio, perto de alguma remota fogueira a
contemplar o voo errante de alguns pássaros que migram mas, não, preferiu estar
mais acima, do lado da linha do Equador, suando a camisa em embates quentes que
buscavam, ao fim e ao cabo, a perspectiva de um país melhor.
Como
deixar de ser quente num território frio ? como equilibrar os termostatos
humanos, como temperar os caldos da vida ? toda vez que senti frio e esfreguei
as mãos para simplesmente ficar sob as cobertas nada saiu do lugar. Mas quando
esfreguei as mãos, olhei para a neve lá fora e nela me expus e a enfrentei dei
comigo mesmo em uma situação mais quente.
Rios
da história e rios de histórias passam por mim sob finas camadas de gelo ou sob
a lava quente que desce e queima os pés. Todas as encruzilhadas e labirintos
historicos podem aparentemente estar a apontar para o fim das utopias mas eu
conjugo o verbo “crer”. Creio que o Sena continuará dando a Paris o seu charme,
creio que o Tietê se prestará sempre a meditações soturnas, creio que a seca
foi abolida do Volga e os maus presságios fugiram do Tamisa. Enfim tento me
diluir em muitas águas. As mágoas ficam apenas como penduricalhos de rimas.
Eu
poderia ver lá embaixo, além de Ushuaia, mas estou aqui entre dunas de areia e
uma imensa ventania a engolir a estação das chuvas que se aproxima. O nível do
meu medo transbordou mas eu o superei. Sei que tenho coração para abrir
comportas. E acredito na eterna alegria daqueles que remam.
Ricardo Soares, escritor, roteirista, jornalista e diretor de tv. Escreve
às segundas e quintas para o DOM TOTAL.
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