PARAGUAIO
PARAGUAIO
Me escuchas. No soy falso. Muito menos artigo de segunda como
muitos pensam. Minha fé em Nossa Senhora
de Dolores é verdadeira e muito intensa. Minha família tem tradição católica
espanhola que sempre me acompanhou vida afora por estradas pelas quais
passo e passei. Não tenho bolor nas
mãos e nem pregos nos pés de forma que sei caminhar bastante. Não quero, não
posso e nunca estive acomodado.
Poderia lhes dizer que nasci em Pedro
Juan Caballero mas não tenho certeza. Tenho certeza apenas que sou paraguaio e
meus olhos assim dizem. Não por serem espertos ou mal dormidos mas por serem
olhos que remontam aos indígenas, meus antepassados. Assim , por vezes, sou
hostilizado dos dois lados da fronteira Paraguai – Brasil. Não tenho vida fácil
mas não vou começar me queixando.
Para começar nasci cedo demais. Nem
seis meses tinha na barriga da minha mãe e já me fui pondo pra fora num mar de
sangue e placenta dentro de um estábulo. Nasci como num faroeste, cercado de
mocinhos, bandidos e cavalos. Minha mãe morreu ali mesmo, no parto, e fui
criado ao Deus dará , pra cima e pra baixo a inventar rodas que não rodavam,
brinquedos que não brincavam e deveres que nunca se cumpriam. Por isso apanhei
bastante a ponto de minha cabeça grande ficar um pouco afundada pelos cascudos
que tomava.
Chego a pensar que , desde sempre,
minha vida cheira a caminhão. Caminhão que sobe, caminhão que desce, caminhão
que entra, caminhão que sai. Sinto, mesmo dormindo, o cheiro da borracha dos
pneus, do óleo diesel e mesmo da comida gordurosa que os caminhoneiros fazem
nos seus fogões improvisados onde queimam os anos que passam, alguns bilhetes
antigos e por vezes os dedos das mãos.
Muitos dos caminhoneiros me chamam de
Garcia . Sendo assim não sei se possuo outro nome. Devo ter porque tenho
documentos. Só não sei onde eles estão porque a memória nunca foi o meu forte
embora eu saiba escrever direito em português e mais ou menos em espanhol. Fui
a escola e lá tive uma boa professora, poucos amigos e um cão que me esperava
todos os dias para me acompanhar até o oficina onde cresci trabalhando. Eu e o
cão sempre sujos de graxa, sujos das patas até a alma.
Um dia, junto desse cão, descobri que
eu tinha dentes. Que serviam para morder, mastigar. Deixavam a comida mole,
mais fácil para engolir. Assim passei a comer além dos angus e purês sem sal e
conheci carne. Melhor ainda foi descobrir que a carne era melhor cozida e
temperada pois durante muito tempo me contentei apenas com as agruras da carne
crua. Devorada no sereno ou ao redor daquela fogueira noturna onde se queimava
graxa e plástico e servia apenas para aquecer, jamais cozinhar ou fritar a
carne.
Meus dentes quando começaram a ser mais
usados sempre me molestaram. Me machucavam as bochechas por dentro, escondiam
nos seus desvãos nacos de comida e outros ciscos que sempre me deram dores de
cabeça. Muitas vezes doeram meus dentes. Mas eu jamais fui ao dentista.
Portanto perdi muitos dos meus dentes mas nunca neguei meu sorriso desdentado
para ninguém. Como vocês podem perceber eu posso ser simpático. Posso ser
simpático e acenar em despedidas,posso ser simpático a dar “buenos dias” mesmo a todos aqueles que me ignoram por eu
ser feio, quieto, paraguaio. Uso bem os dentes que me sobram. ( Como diz o marcador esse texto é um fragmento de um tijolo maior que por motivos muitos resolvi repartir com os poucos mas fiéis leitores...espero que ele siga crescendo)
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