à deriva num rio barrento
(...)Escrevo porque necessito. De amparo
sobretudo. Sem ele não sei ler sequer as horas, sou aquela velha canoa roída de
cupins , à deriva num rio barrento. Não sei quem está nas margens mas sei que
estou à margem de um longo processo que foi me excluindo até me transformar num
doente dos nervos. E preciso por a culpa em alguém.
Então,
por onde começo ? pela infância querida que os anos não trazem mais ? pela
adolescência tardia, pela juventude transviada, pelos casamentos equivocados,
pelos conflitos não resolvidos com pai , mãe e companhia ? Ou começo por uma noite fria onde nasci
trazendo bronquite e preocupações à já
citada senhora minha mãe ? Embora seja
historicamente um tempo curto 60 são sessenta. Por numeral ou por extenso.
Não
há mais sentido a essa altura mascar chicletes ou usar bermudas coloridas com
bolsos anexos. Não quero ser um velhinho descolado mas também não me furtarei a
olhar e cobiçar bundinhas nativas que gravitam ao meu redor em dias de verão. A
libido naufraga e nem sei se sou o último exemplar de minha espécie. Só sei que
bebo mais café, durmo menos, sonho com as mulheres que perdi e continuo tendo
muito medo das alturas. Vertigens supremas, sempre.
Nas
ruas, acreditem, os cãezinhos me olham com desconfiança e outro dia um mendigo
me pediu uns trocados e enquanto procurava moedas nos bolsos ele desistiu e foi
embora dizendo um formal "não se preocupe não". Foi no mesmo dia que revisitei cantos
perdidos da cidade onde não ia desde os meus verdes anos para constatar,
estupefato, que muita coisa,apesar de mais encardida, seguia do mesmo jeito. Procurei
ecos do meu avô entre os elevadores pantográficos e pedaços dos pacotes de
papel pardo que ele carregava cheio de surpresas. Nada encontrei. Nem
vestígios. Talvez pelo fato que meu avô tenha partido há muito tempo e muito
além dos 60 apesar do excesso de álcool e de tabaco.
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