é hoje e poderia ter sido ontem
Hoje atos por todo o Brasil , a tsunami da educação, contra as barbáries perpetradas por esse desgoverno. Coincidência ou não acho nos meus alfarrábios o capítulo 11 de um romance iniciado em 1986, mexido em 2016 e jamais publicado. Foi ontem mas poderia ter sido hoje...incrível como muitas vezes o mundo dá voltas sem sair do lugar.
11
Infelizes
e conscientes de nossa inferioridade tribal caminhávamos todos juntos pelo
gramado nos imaginando jovens existencialistas que “aquentaram” Paris em maio
de 68. Eu particularmente queria ser Daniel Cohn-Bendit, Dany , Le Rouge.
Inteligente, ousado , polêmico. Vestia minhas calças vermelhas como na letra de
“Vapor Barato” , uma camisa rota, barba comprida , cabelos revoltos. Fumava
“Rolíude” , bebia pinga com limão. Acreditava que os conceitos de Trotsky eram
a salvação da humanidade e que naquele instante era preciso radicalizar.
Infelizes
mas certos de que íamos defender uma grande causa chegamos a sorrir naquele
dia. Eu estava preocupado em desempenhar um bom papel, não deixar a peteca cair,mostrar minha liderança em
situações difíceis. Éramos um grupo coeso de opiniões distintas, dá para
entender ? E caminhávamos a passos
acelerados, uma improvisada Rosa de
Luxemburgo ao nosso lado com um cravo vermelho entre os cabelos. Todos
apaixonados por ela. Mas naquele instante não havia espaço para tesão. A missão
concreta estava ali a nossa frente , a poucos passos de nós.
De
longe, quase correndo pelo gramado, podíamos ver outros grupos chegando de
outros pontos da cidade Universitária.
Pequenos ou grandes mas aparentemente organizados. Com um objetivo comum
determinado pela Assembléia do Diretório Central dos Estudantes. Subir na
marquise do prédio da reitoria e interditar a portaria . Objetivo final : pedir
a renúncia do reitor nazi-fascista.
Eu
e meu grupo da Escola de Comunicações e Artes estávamos em 19 pessoas. Crentes
que representávamos a maioria. Nossa assembléia foi pró-forma porque já sabíamos para onde
conduzi-la. Seria só uma questão de habilidade que, modéstia a parte, eu
tinha. Mas, no fim das contas, aprovada
nossa adesão ao movimento de tomar a marquise , poucos foram os que nos
acompanharam. Muitos companheiros cagões deram pra trás.
E
lá fomos nós, quixotescas criaturas, pelo gramado. Pena que não tivéssemos
nenhum hino revolucionário para cantar. O clima era propício e, confesso, até
que deu vontade de assobiar a “Marselhesa”. Mas eu só sabia um pedacinho e
achei que poderia soar ridículo.Fiquei de assobio selado. O importante na
verdade era ir em frente. Só com aquela manifestação de força talvez o reitor
fosse sensível aos nossos apelos. Queríamos eleger nossos próprios dirigentes.
Queríamos mais verbas para os nossos projetos de jornais laboratórios e filmes
experimentais. Queríamos professores menos burros e com alguma experiência em
redações de jornais e revistas que efetivamente pudessem nos dar alguma
contribuição para o futuro. Não queríamos meros burocratas. Queríamos muito
menos teoria e mais prática.
O
pessoal mais politizado da Física e da Química carregava uma porrada de
cartazes : “ Se o reitor não ceder o pau vai comer”, “Abaixo a repressão”,
“Viva a democracia” e assemelhados. Ao meu lado, gordo, pesado, bufando, seguia
Arnaldo , de boina preta, estrela vermelha no peito, camiseta com a cara do Che
Guevara. Todos nós tínhamos em nossos quartos inevitáveis cartazes mal
impressos onde Che dizia que era preciso endurecer sem perder a ternura
jamais.Arnaldo um dia esqueceria isso tudo à frente da comunicação corporativa
de uma multinacional.
Quando
os grupos começaram a se cruzar se ouviram “vivas”, hurras, abraços , apertos
de mão, beijos na boca. Perto dos alicerces nunca acabados do Museu de Arte
Contemporânea seguíamos todos juntos num grupo que, à primeira vista, pareceu
grande. Exército juvenil de Brancaleone esperávamos que a polícia chegasse a
qualquer momento com suas bombas de gás
, seus cassetetes anti-democráticos , sua vontade de descer porrada. Mas não
tínhamos medo. Queríamos mais que o pau comesse. Eu, vaidoso, tinha particularmente esse
desejo já que em poucos minutos a imprensa deveria chegar a procura de boas
fotos,um conflitozinho para dar na primeira página naquela tarde fria do mês de
agosto.
Já
imaginava as manchetes do dia seguinte e as queixas do governador esclerosado que diria que todo o movimento era iniciativa
de meia dúzia de agitadores profissionais que tinham “a intenção de
desestabilizar o governo” e todo aquele bolodório que há séculos os governantes
repetem. Já imaginava no que ia dar toda aquela nossa marcha para tentar a
derrubada de nossa pequena Bastilha.
Chegamos
até que organizados ao nosso centro de operações. Os dois guardas da portaria
simplesmente se retiraram e não ofereceram qualquer resistência. Com uma tosca
escada de madeira escalamos a marquise e
lá ficamos plantados. Umas 25 pessoas. A
portaria também foi ocupada. Surgiu um megafone, uma barraca amarela foi
montada e uma fogueira foi logo feita.
Seguiram-se discursos, protestos, palavras de ordem, inevitáveis conflitos de
idéias entre as 1800 fatias da esquerda juvenil que ali se concentravam.
Eu
falei, claro. Firme e decidido fui até aplaudido. Defendi com ênfase a posição
do pessoal da Escola de Comunicações e Artes. Não queríamos simplesmente a
saída do reitor. Era preciso que ele se comprometesse por escrito que seu sucessor fosse eleito pelo voto
direto. Também dávamos nosso integral apoio a greve dos funcionários e
servidores da Universidade que brigavam pelo reescalonamento de salários.
Os
discursos se multiplicaram, os jornalistas zanzavam de um lado para outro como
baratas e os policiais foram cercando toda a área . Apareceu a cavalaria,
camburões, caminhões com a tropa de choque. O milico-chefe disse em alto e bom
som que queria que a gente saísse da marquise “numa boa”. Senão eles iam subir
e nos tirar a força. Pagamos para ver.
Começou
a xingação de lado a lado .Um papel voando dali, um tapa na orelha acolá, mães
sendo avacalhadas de ambos os lados e o pau acabou comendo solto como todos já
esperavam e os jornalistas queriam para gáudio dos noticiários. As câmeras das
tvs filmavam sem parar cenas que todos sabíamos que nunca iriam para o ar pelo
bunda-molismo dos editores de tv muito mais realistas que seus reis. Os
fotógrafos disparavam suas câmeras flagrando policiais tomando tijoladas,
estudantes levando murros na boca e tendo as roupas rasgadas,bombas de gás
pipocando e toda aquela coreografia manjada dos
enfrentamentos.
Por
fim negociamos que sobre a marquise ficaria um grupo pequeno e ninguém mais
subiria enquanto tentaríamos um diálogo com o senhor reitor. No entanto os
policiais ficaram ali do lado nos vigiando. Continuaram as provocações e
passadas duas horas a porradaria rolou de novo. Um paspalho infiltrado subiu na
marquise e começou a me xingar. Fui tomar
satisfação e ele me empurrou .Consegui dar um soco na cabeça do sujeito mas aí
tomei socos por todo o corpo. O sujeito era treinado pra dar porrada e quando
começou chegaram mais dois para ajudar o paspalho. A mulherada gritava lá
embaixo, arrancava os cabelos e urrava para os espancadores :
--- Assassinos, covardes, filhos da
puta!
Todo
socado fui parar dentro de um camburão com mais
três que nem do Campus eram. Fiquei sabendo depois que era um
secundarista e dois trombadinhas. Com muita negociação e papo furado jogado pra
cima de um tenentinho arrogante acabaram conseguindo me tirar do camburão e fui
recebido aos beijos, abraços e caí nos braços da multidão. Dia seguinte minha
foto espancado saiu em todos os jornais .
Por
fim a marquise foi desocupada a força, o reitor continuou sendo o fascista , os
funcionários seguiram ganhando pouco ,minha mãe quase morre de desgosto com a
certeza de que eu era comunista mas consegui ser Daniel Cohn- Bendit por um
dia.
Todo
esse relato foi examinado cuidadosamente
por Walter Berg num caderno de anotações de Henrique Coimbra escrito numa letra
filha da mãe de ruim . O caderno tinha folhas amareladas, uma capa preta dura.
Eram, digamos, “quase memórias” e o texto não tinha data . Fazia parte de um
longo relato do falecido repórter que foi confiado a Abramides, sua antiga namorada.
Na
capa do tal caderno de capa preta havia uma etiqueta esmaecida onde se lia um
óbvio título “Diário de Bordo” o que
dava a entender que os principais episódios de um período da vida de Coimbra
estavam ali registrados. Poucos eram datados mas muitos eram curiosos. Coimbra
teria sido um escritor razoável, pensava Berg. Até sua morte na Itália ,ainda
jovem, passou por uma porção de lugares. Jornais, revistas, emissoras de rádio.
Só não teve experiência na televisão que considerava um veículo menor até
porque se considerava um “homem somente
de texto”. Não dizia “profissional do texto” mas “homem somente de texto”.
Coimbra
chegou a ser preso três vezes por sua militância estudantil . Primeiro
trotskista, depois anarquista. Apesar de nunca haver se aventurado pela
literatura cometeu aos 20 anos um livro auto financiado de poesias com o título nada sutil de “Pico de Vida”.
Ganhou dois prêmios fajutos de jornalismo que só lhe interessaram pela grana
que o fez viajar pela América boliviana e peruana e por parte da Europa
turística.
Um
detalhe que chamou a atenção de Berg no diário de bordo de Coimbra foi a
epígrafe, repetida sempre a cada dez páginas, que confirmava que nunca o
repórter abandonou o anarquismo : “ Quem quer que seja que ponha as mãos sobre mim,para me
governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo”. ( Pierre Joseph
Phoudon)
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