Nós, o justiceiro, acreditamos em ressurreição
NÓS,O JUSTICEIRO, ACREDITAMOS EM RESSURREIÇÃO
Nós somos um previsível justiceiro.
Estamos numa maré econômica enrascada e o ano é 2016. Tomamos cachaça em
pequenos goles pra desanuviar mas estão fritando a nossa presidente junto com a
linguiça que comerei com farinha. Nós temos um olhar soturno. Em nosso passado há
muita luta atrás de democracia e agora estão colocando a nossa no abismo. Temos
receio. Por isso bebemos cachaça.
A porta do
impeachment se abre. Entram bandidos togados, deputados safados e gente da pior
laia que põe a presidente eleita pra correr. Inventam um golpe parlamentar e nós
fingimos ignorar os safados. Mas os safados tomam o poder de assalto e lá
colocam um amargo vampiro de mãos de gárgula e retórica de tumba. Por isso
bebemos cachaça. Os bandidos se aproximam de nós e vão nos roubando direitos.
Eles nos insultam , riem de nossa cara. Nosso coração se aperta. Não queremos
depor ninguém muito menos pela força. Mas precisamos abrir uma exceção para o amargo
vampiro.
Tentamos
juntar forças para o duelo mas as forças se esvaem , ninguém se entende e no
saloon os dias passam e o amargo vampiro fica ajudando a desconstrução para o
pior que vem depois.Ficamos apreensivos , tomando a cachaça em pequenos goles,
agora com limão, porque tudo vai ficando mais azedo. Caminhamos lentamente em
direção a um pôr de sol mas ele já não está lá. Roubam-nos a luz, a esperança
,os dias melhores que deviam vir.
Entramos em
nossos aposentos e ficamos pensando , cada qual no seu canto. Nos deitamos com
as roupas do corpo , olhamos o teto e tomamos mais cachaça.Com ou sem limão.
Sem açúcar e sem afeto. Suspiramos e temos remorsos. E temos medos e assombros
e daí para o lugar do amargo vampiro organizam uma enorme conspiração de
mentiras e manipulações, vilanizam a presidente deposta e o seu partido e elegem por fim- mais do que um amargo
vampiro – um monstro, uma aberração que não sabe sequer conjugar verbos e não leu cinco parágrafos na vida. É uma espécie
de Mussolini do vale do Ribeira e ainda assim
suspiramos com esperanças. Nós somos um previsível justiceiro que não sabe como
fazer justiça.
Agora,
quando deveria ser manhã fica de noite. Quando é de noite ela fica mais escura
e mais espessa. Levantamos da cama e queremos duelar no pôr se sol que já não
há com o Mussolini tosco . Colocamos o cinturão e uma garrucha na cinta. Não
queremos violência mas como fazer se foram violentos com a gente ? Descemos
para a rua e o vento e aqueles seixos móveis dos faroestes nos aguardam. A população
atrás das janelas está de olho em nós. Uns torcem por nós , outros pelo
Mussolini . Aí ficamos frente a frente com ele. Ele vê nosso olhar soturno e
seu riso de analfabeto se apaga. Vê que desejamos o mal eterno pra ele. O Mussolini
nos desperta os piores instintos.
Vemos o
elemento e sabemos que é mais do que apenas um pobre diabo. Ele é o diabo em
pessoa com sua família de estetas da violência e da abominação. Ele é uma
praga, uma aberração.Pobre tosco Mussolini perigoso. Temos o ódio nublando os
nossos olhos e o inimigo percebe. Não devia ter nos afrontado tanto. Agora
queremos o mal dele, a sua total extinção.Agora ele parece estar aterrorizado.
Seus dentes feios, sua pele macilenta e sua retórica podre fedem a olhos vistos.Que coisa triste que apodrece a nossa frente.
Uma lágrima
cai sobre o chão poeirento. É nossa, representando tantas lágrimas de tantos milhões
que não colocaram esse monstro aqui , com poder, na nossa frente. Aí levamos a mão ao coldre, alisamos a arma.
Mussolini tosco gosta de armas, nós não gostamos. Mas é ela que nos protege. No entanto não
sacamos.É o Mussolini que saca , vemos a arma na mão dele, ouvimos o disparo ,
a bala vem direta e reta pro nosso peito , vai morar no nosso coração. Sentimos
dor e tombamos. Mas não morremos diante
do riso tosco do verme.Nós,o justiceiro, não morremos de verdade.Nós,o justiceiro, estamos atarantados. Precisamos reunir os nossos lados porque mesmo diante da
peste , da ignominia , da escrotidão, nós, o justiceiro acreditamos na
ressurreição.
14 de abril de 2020
Texto inteiramente
inspirado no notável conto “Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade” de Moacyr
Scliar.
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