Viajo porque preciso, volto porque te amo
Diante desse mar de novidades que muitas vezes ocultam novidades relevantes republico abaixo a crônica publicada originalmente no DOM TOTAL (clique aqui)
Ricardo Soares*
Uma das coisas que sempre me afligiu como jornalista e "pitaqueiro" da área cultural foi o quanto somos submetidos pelas leis do mercado ao próprio mercado. Me explico: a pauta que rege a mídia cultural é a novidade, o lançamento, o que vai para as muitas vitrines, agora notadamente virtuais. Disso se ressente a música, a literatura, artes visuais e, lógico, o cinema. É tudo muito volátil, tudo muito rápido e aqui também me pergunto: onde vamos com tanta pressa?
Diante dessa premissa a "novidade" da semana passada fica velha na semana seguinte e não sobra tempo para digerir o que o talento (ou oportunismo) humano nos coloca a disposição. É a velha máxima de Caetano revisitada: "quem lê tanta notícia?". O critério de "qualidade" parece então ser tão somente a "novidade".
O fenômeno que atinge todos os que, digamos, "consomem arte" faz com que deixemos passar batido livros, músicas, filmes que deveriam ter sido melhor vistos, discutidos, digeridos. Encontro uma lista imensa e cada qual deve ter a sua.
Andei refletindo sobre isso quando finalmente vi por esses dias o belíssimo filme brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo, produção de 2009 da dupla de craques Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus) e Karim Ainouz (Madame Satã, Céu de Suely, Praia do Futuro), que a partir de uma narração em off – de um geólogo que percorre cantos ermos do Nordeste –reconstrói em cacos a própria vida, lembranças, trajetórias e amores do protagonista, numa colagem que ensejou um dos melhores roadie movies que vi na vida. O ator narrador é o mais que competente Irandhir Santos, vivendo o geólogo Zé Renato, 35 anos, que está no sertão nordestino realizando uma pesquisa de campo para avaliar o provável percurso de um canal que será construído desviando as águas de um rio caudaloso da região. Toda e qualquer semelhança com a transposição do São Francisco não parece mera coincidência. Durante a viagem, o geólogo purga um grande amor desfeito e entre ele, a paisagem e as pessoas que encontra pelo caminho, há em comum a desolação, o isolamento, a vaga esperança de que, talvez, quem sabe, dias melhores virão.
Na época, apesar do meu interesse no filme, perdi sua curta exibição entre os cinemas do Rio e São Paulo onde alternava trabalho, diversão e, vá lá, prazer. Eis que agora, apesar de todos os seus pesares, a Netflix disponibiliza essa pérola de delicadeza que revela (como raros filmes brasileiros fizeram) um país nordestino verdadeiro, nu e cru, apesar da glamourização que faz dele outras mídias. Consta que o filme é uma edição inspirada de rebotalhos de imagens de outros filmes feitos pelos diretores e daí me vem a máxima do poeta Wally Salomão: "a memória é uma ilha de edição".
O filme sempre me interessou, a começar pelo título tirado de notória frase de para-choques de caminhões Brasil adentro: "Viajo porque preciso, volto porque te amo". Vi e li essa frase durante os quatro anos iniciais de minha carreira jornalística (1978 a 1982), onde viajei Brasil afora trabalhando em revistas para caminhoneiros publicadas pela editora Abril (O carreteiro) e Bloch Editores (Boléia) e me enxerguei em muitas passagens do protagonista. Sim, eu ia viajava porque precisava. Voltava porque amava.
O filme de certa forma aplaca um pouco meu raciocínio crítico em relação ao cinema nacional que sempre acreditei ter mostrado pouco o tal Brasil real ou "Brasil profundo", que é esse termo do qual ando tomando birra pois sempre usado por intelectuais que nunca puseram o pé na estrada. Mas essa é outra rota e não vou entrar nela.
O fato é que dormi com o coração aquecido nesses dias difíceis depois de assistir ao filme do Karim e do Marcelo. Me vi entre Transamazônica, Belém-Brasília, Canudos, Tocantins, Matos Grossos, serras e espinhaços baianos e gaúchos, sempre em busca do trabalho e de mim mesmo, com o perdão do chavão. E apesar de ser do tal "ramo cultural", me penitencio por não ter assistido a essa beleza há mais tempo. Fui vítima da mesma "lógica do mercado" que critico e nos impõe urgências desnecessárias que deixam passar belezas essenciais.
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