A SAGA DE MACILENTO
Capítulo 136 de "Devo a eles um romance".
Nesses dias que correm, nessa
história que corre para tantos lados eu vi Macilento mudar de calçada, um pouco
à minha frente, só para não ter que me cumprimentar. Não fiquei ofendido com o
gesto mas achei curioso perceber que depois de tantos anos Macilento parece me
desprezar tanto quanto eu a ele.
Macilento dá sentido pleno, dá
significado à palavra “desprezível”. É dos mais desprezíveis seres humanos que
já conheci não apenas no sentido genérico mas no específico, no sentido
profissional da palavra. Como eu ele se tornou um profissional de comunicação. Teve
muito mais destaque do que eu não apenas por ser melhor político, mas por
dominar perfeitamente a arte de bajular sem parecer que está bajulando.
Tornou-se ainda estudante de
jornalismo confidente e íntimo de um dono de grande jornal e ao amealhar plena
confiança de seu patrão-amigo galgou postos e poder exercendo sua macilenta
autoridade através de normas, decálogos e regras quase incompreensíveis a quem
era do ramo. Ele “falava” para os tecnocratas da notícia que pouco a pouco
formava, ou melhor, deformava. Macilento aliás tem o mérito de ser um dos
destruidores do ramo e é tão hábil que sendo um destruidor passa-se por um
construtor.
O apelido “Macilento” que lhe
pespego nessa narrativa não é mera maldade. Macilento tem a pele macilenta, uma
sempre jocosa expressão de lagarto de
óculos cujos olhos se movimentam ligeiros em direção ao seu alvo e um apetite
de dragão de Komodo por bons cargos e salários. Sua estampa de pele macerada e
macilenta lhe dá ares reptilianos e sempre achei que fosse ver um dia Macilento
colocar uma língua bifurcada para fora da boca enquanto falava. Macilento definitivamente
parecia um grande lagarto albino.
A essa altura da vida, pós-infartado e tudo
mais, deveria ser mais tolerante com os macilentos da vida, mas ainda não
consigo. Desprezo Macilento há tanto tempo que agora quase me sinto honrado
quando percebo que ele me despreza na mesma proporção e acho que também há
muito tempo. Pude perceber isso quando ele mudou de calçada para não ter que me
cumprimentar.
Uma das primeiras más impressões
que tenho de Macilento com sua voz pastosa de sibilar arrogante foi em uma
reunião num auditório do jornal onde ele trabalhava e já ocupava cargo
importante em meados dos anos 80. Macilento e um outro seu comparsa reuniram
naquela tarde uma porção de candidatos a resenhistas literários e passaram a
explanar as regras que deveríamos seguir caso fossemos aprovados por ele e sua
trupe de ungidos. As regras eram absurdas e descabidas, mas isso não é nada
comparado ao que vem a seguir. Quando eu tive a ousadia de lhe perguntar quanto
cada colaborador ganharia por resenha aprovada Macilento me lançou um terrível
e macilento olhar de desprezo do alto de sua aparência de lagarto glacial. E
respondeu, azedo:
— Meu caro, as resenhas tem pagamento
simbólico porque escrever para esse espaço é estar em uma vitrine!
O pagamento simbólico a que
Macilento se referia não pagava uma passagem de ida e volta do Metro e então, estupefato,
respondi:
— Se eu quisesse escrever para uma vitrine
aprendia melhor inglês ou francês e ia tentar o New York Times ou o Le Monde.
Dito isso levantei-me e fui embora
junto com o solerte escritor Reinaldo Moraes para nunca mais pensar em resenhar
ou trabalhar para um jornal que tinha Macilento como uma das suas estrelas. Muito
embora, repito, Macilento tenha sido sempre muito mais importante do que eu
pelos valores vigentes tenho imensa alegria em dizer que cavei meu próprio
espaço independente de figuras nefastas como ele hoje um quase singelo senhor
branquelo ocupado em lustrar o seu vasto ego fazendo suspirar mocinhas mais
novas do que ele que o seguem, sem futuro, como a uma novela mexicana.
Depois desse episódio dos
resenhistas estive algumas poucas vezes com Macilento durante minha vida
profissional e a cada novo encontro, mesmo na casa de amigos comuns, sempre
aumentava meu desprezo por Macilento. Mas por que me ocupo de tão triste figura
nesse extenso relato, nesse livro que é meu e não dele? Muito simples. Há uma
certa máxima, embutida em outros conceitos éticos, que dá conta que um amigo de
nosso amigo não pode ser nosso inimigo. Macilento teria ajudado, teria sido
camarada em certa época com meu amigo Alfa quando ele foi trabalhar em Brasília
na sucursal do jornal que Macilento ajudava a destruir. Alfa ficou grato a ele
por vários motivos e parece até que se tornou próximo, chegou a frequentar a casa
de Macilento quando voltou de Brasília pra São Paulo.
Macilento nunca deu o menor valor ao trabalho poético de Alfa e muito menos ao trabalho dos amigos do Alfa, no caso nós. Mas Alfa me garante que ele não é de todo mau e que eu deveria ter um pouco de boa vontade com Macilento. Mas perdão Deus, perdão Alfa, perdão São Francisco de Assis... eu não consigo. Cada vez que lembro da expressão macilenta de Macilento mais eu o associo ao que de pior houve na nossa mídia nativa entre os meados dos anos 80 e começo dos 90.
Comentários