NARCISOS COBERTOS DE LAMA

 




Há ocasiões em que a tolerância vai a zero e nunca tive a certeza se é bom ou não desabafar via texto quando isso acontece. Pelo sim, pelo não republico aqui texto postado no "Quarentena News"  que diz entre outras coisinhas : "Não sejamos hipócritas. A cara do Brasil é medonha e não só nossa ética está em ruínas. A estética foi pro beleléu faz tempo. Somos um Narciso coberto de fezes. Olhamos para o espelho e enxergamos ouro sobre nós e essa é apenas uma de nossas grandes desgraças.( texto original clique aqui)  

  • SP E BRASIL: NARCISOS COBERTOS DE LAMA
  • Por Ricardo Soares*
  • Curto e grosso uma querida e antiga amiga disse outro dia na sua rede social sobre esse começo de 2022 : “Estou de saco cheio”. Talvez mal saiba ela o quanto a pequetita frase me pegou de jeito principalmente por eu ter resistido por bem mais que 15 para despejar fel ou pessimismo acerca do cenário mundial, mas principalmente nacional. Juro que tentei mas ao retumbante “saco cheio” da amiga caiu-me aos olhos um texto do escritor (e brother literário) Marcelo Mirisola me levou a romper meu silêncio obsequioso sobre o panorama atual. Ele publicou a pérola na revista “Bula” e em torno do seu protesto e da minha amiga eu tiro a mordaça mesmo lamentando fazê-lo. Não que as minhas mal traçadas venham a fazer qualquer diferença mas tem horas que ficar passando pano ou submergir no silêncio faz mais mal que bem. Então vamos nessa e me perdoem possíveis excessos.
  • O Mirisola disse que breguice e cafajestismo em geral o apavoram. A mim também e não é de hoje. E como o brother literário e muitos outros, fico com a impressão de que São Paulo com a pandemia mudou muito e para pior. Além da total degradação do espaço urbano e da miséria, do horror das enchentes e da feiura tucana do Anhangabaú os urbanoides de São Paulo parecem cada vez mais egoístas, individualistas, gente que não se constrange em viver sob a égide do estilo “fura fila”. Meu pirão primeiro é o mote cotidiano.
  • Todo esse ódio, baixo astral e breguice foi turbinado (como lembra Mirisola) com “uma certa neo-cafajestice sertaneja, especialmente nas mulheres — que, na minha opinião, tem mais a ver com o orgulho de ter alcançado uma “independência cafajeste” em relação aos homens do que com feminismo propriamente dito. Uma competição do tipo vamos dar o troco na mesma moeda, vamos ver quem é mais escroto (a). E dá-lhe unhões de acrílico, cerveja litrão, beiços de ácido hialurônico, preenchimentos, mutilações e clareamentos genitais — a ordem dos fatores não altera o horror do produto — chapelões, chifres reluzentes à mancheia, corpos esculpidos em academias(...)
  • Evidente que o raciocínio não poupa os machos da espécie, antes que me acusem, e ao Mirisola, de misoginia. A boçalidade é de “todes” os sexos e relativizar isso como fazem alguns “jecatelectuais” é fazer uma média tremenda com a tal burrice ostentação. Chega dessa paradinha de dizer que o estrume estético, musical e comportamental tem a ver com legítima manifestação das classes menos abastadas. Papinho para boi dormir especialmente amplificado por alguns deformadores de opinião que forçam a mão para transformar nossa teledramaturgia no ponto alto da nossa civilização sem contar na ordenha bajulatória que sempre fazem aos Silvios Santos e Faustões de nosso entretenimento, gente que passa décadas enriquecendo turbinando a imbecilidade nacional.
  • A porcariada sertaneja nunca será música caipira embora tente fundir e desvirtuar a história do gênero. Há mais de 30 anos quando vi um show (a trabalho) dos gemedores lancinantes Chitãozinho e Xororó num clube de classe média alta percebi que estava tudo dominado. A coisa piorou de tal forma que hoje a hedionda dupla pode ser comparada a Brahms diante do que está sob os holofotes da sofrência.
  • Ainda como lembra o Mirisola, “antes da praga neo-sertaneja e dos seus improváveis desdobramentos (...) antes disso, porém, existia um certo pudor (hipocrisia?) em ser ridículo, cafona, brega. As pessoas ao menos tentavam disfarçar e/ou sobreviver à breguice — embora não conseguissem — mas tentavam. Até que o Brasil finalmente livrou-se dos grilhões de uma geração que se projetava para o futuro com desprendimento e elegância, uma geração culta, sofisticada e genial que nunca, jamais o representou. Na verdade, tratou-se de um lapso histórico, uma falha gritante na matrix(...) O que eu quero dizer é que Tom Jobim nunca nos pertenceu. Nunca o merecemos. Somos xucros, medonhos”.
  • Nesse ponto, peço licença ao leitor para não vilanizar apenas São Paulo nessa esfera. O Brasil inteiro está contaminado pelo vírus da burrice disfarçada de entretenimento legitimo. Goiânia é a Sodoma e Gomorra desses horrores. Uma verdadeira usina de estultices disfarçada de “música” quando na verdade é um coletivo de marmanjos gordos ou marombados que parecem estar sendo empalados enquanto cantam (cantam??).
  • Vamos pois parar de dourar a pílula e admitir que os brasileiros podem enfim se reconhecerem como o que são: pretensiosos que julgam viver no melhor país do mundo, semianalfabetos que nunca leram um livro inteiro, cultores de autoajuda e empreendedorismo vadio cuja meta é apenas acumular bens, visitar shoppings e passar férias em Miami. Somos um horror civilizatório que nem é mais o melhor naquilo que um dia fomos: futebol e música. Somos um arremedo de república de bananas que foi normatizado pelo excremento que nos desgoverna desde 1º de janeiro de 2019.
  • E para finalizar e concordar mais uma vez com o Mirisola eu digo: “só tem uma coisa que é mais constrangedora do que ser escritor no Brasil molambento de hoje. É ser músico. Mas talvez tenha coisa pior. Sim! Pior do que ser escritor e músico! E aconteceu recentemente. Incautas dormiram feministas e acordaram com Marilia Mendonça ungida à porta-estandarte da causa, foi de lascar. A vida não deve ser nada fácil para as feministas”.
  • Eu disse que poderia pesar a mão e pesei. Por isso relutei em escrever essas linhas. Mas não tem mesmo como disfarçar. Não sejamos hipócritas. A cara do Brasil é medonha e não só nossa ética está em ruínas. A estética foi pro beleléu faz tempo. Somos um Narciso coberto de fezes. Olhamos para o espelho e enxergamos ouro sobre nós e essa é apenas uma de nossas grandes desgraças.
  • *Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 9 livros, dirigiu 12 documentários.

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