RUBEM BRAGA ERA O DOM CASMURRO

    


Republicação de uma crônica originalmente publicada no DOM TOTAL  em dezembro de 2019 (clique aqui)

Ricardo Soares*

Quando o jornalismo se desidrata resta, sempre, falar de arte. Aqui, no caso, mais de literatura. Passei a maior parte da minha juventude sendo repórter na área de cultura, principalmente no caderno B do Jornal do Brasil e no caderno 2 do Estado de S.Paulo. Isso sem falar de minhas passagens pela TV Cultura de São Paulo (onde escrevi e apresentei o programa Metrópolis de sua fundação em 1988 a 1990) pela extinta revista  HV ( publicada pela Carta Editorial , a mesma de Vogue) e até como redator- chefe da revista Trip que também abria as ondas para temas culturais.

Somada a essa experiência mais oito anos em que dirigi e apresentei programas de literatura na televisão (pela rede Sesc Senac, retransmitidos por inúmeras emissoras públicas do país) acabei por conviver, conversar, trocar e-mails e cartas com artistas brasileiros de muitas gerações. Não serei deselegante aqui, portanto, não direi aqueles que mais me decepcionaram e os que mais me causaram espécie.

Isso posto digo que a ideia dessa crônica surgiu de maneira singela e brusca numa tarde de sábado de fevereiro de 2018 quando degustava um  livrinho (e o "inho" é puro carinho) chamado Retratos Parisienses do Rubem Braga, um volume organizado pelo professor de literatura Augusto Massi que publicado em 2013 passou  batido entre nós. Nesses "Retratos" Rubem Braga, a quem só vi uma vez, narra seus encontros com escritores do porte de Sartre, Céline e Thomas Mann além de pintores como Picasso  e cineastas como Clouzot. A esse simpático varejo ele não chamou de entrevistas e sim de "retratos”. Copiei pois o mote e a intenção  de Rubem Braga . E assim narro o “retrato” do que vivi com ele.

Na verdade nunca visitei Rubem Braga foi ele que me visitou. Ou melhor, nos visitou. Explico: em 1980 com poucos mais de 20 anos eu era o responsável, junto com os amigos, que haviam fundado o poético grupo Poetasia (em SP), pela organização do estande dos poetas independentes da Bienal do Livro, que então funcionava no Ibirapuera. Ficávamos na saída do prédio, quase o último estande, o "ânus da Bienal" como nos desqualificou à época um "resenhistazinho". Afinal éramos os primos pobres, o lumpesinato autoral que buscava um lugar ao sol.

Foi então que num fim de tarde, lusco-fusco que se via entre os vidros do prédio, começou a se aproximar do estande uma caudalosa caravana. Sabíamos que alguém importante se aproximava pela quantidade de puxa-sacos e subliteratos à volta. Até que ao chegarem no estande revelou-se quem estava no meio da roda: Rubem Braga e se não bastasse acompanhado de Fernando Sabino e Ligia, sua então mulher.

Com a efusão e simpatia que lhe era peculiar Sabino se aproximou sorrindo e foi logo nos cumprimentando. Tenho quase a certeza que já o conhecia pessoalmente naquela ocasião. Começamos a mostrar os livros (mambembes em sua maioria) que expúnhamos e vendíamos. Poetas de todos os estados aglomerados em volumezinhos toscos e mal-acabados em busca de editores e de atenção seletiva.

Tal qual um político em busca de votos Sabino acenava a todos, estendia a mão enquanto Rubem Braga, casmurro, punha os óculos na ponta do nariz e se detinha em um ou outro volume. Sabino me apresentou a ele e sequer me lembro se ele estendeu ou não a mão ou se acenou com a cabeça. O que sei é que entrou mudo e saiu calado do estande. Seus únicos gestos foram acenos de cabeça que eu intuía serem sinais de aprovação ao que estava vendo. Para mim bastou. O cronista que mais admirei na vida estava ali do nosso lado e só por ali estar interpretei como um sinal de incentivo. Segui, pois, escrevendo.

*Ricardo Soares é diretor de TV, roteirista, escritor e jornalista. Publicou oito livros, dirigiu 12 documentários

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