Porque me ufano de ter morado em Brasília
PORQUE ME UFANO DE TER MORADO EM BRASÍLIA
Passou depressa e só agora me dei conta que já fazem quase dez
anos que fui morar em Brasília. Entre abril de 2013 e dezembro de 2014 fiquei
muito mais na capital da República do que na minha casa na grande São Paulo
pois tinha acabado de assumir um cargo que deveria ter sido relevante (mas não
foi) numa empresa pública. Tipo episódio que se encaixaria num “sonho de uma
noite de verão”. No caso,noite de outono,pois assumi num abril que logo seria
despedaçado para fazer alusão ao título de um livro de Ismail Kadaré.
Ter vivido em
Brasília esses quase dois anos me deu uma perspectiva completamente diferente
da cidade que eu via com grande desconfiança até então.Durante toda a minha
vida profissional tinha passado apenas períodos fugazes na cidade sonho de JK o
que me impediu de ter opinião ampla, geral e irrestrita sobre aquele peculiar
aglomerado urbano. O máximo que tinha ficado em Brasília,além de bates e
voltas,foi um período em que lá fui trabalhar numa campanha eleitoral.Pouco
mais de um mês,talvez. A temporada 2013-2014 fez mudar toda a minha percepção
da cidade e seu entorno que, aliás, nada tem a ver com o mundialmente conhecido
“plano piloto”.
O entorno ao qual
me refiro é,por exemplo, Ceilândia, Taquatinga, Águas Claras, Guará,São Sebastião e
muitos outros lugares que apesar de comporem o Distrito Federal nada tem a ver
com ele enquanto concepção urbanística. São pedaços desplugados do eixo –
Central do Planalto Central, aquele dos cartões postais, aquele festejado e
esculachado por gregos, troianos e baianos e centro de todo poder e suas
disputas.
Desnecessário
dizer–especialmente para os residentes em Brasília- que o tal bem resolvido plano-piloto (aquele
que de cima parece um avião)é uma boa mistura de bons serviços nas
superquadras, grandes espaços verdes e ciclovias, lugar para quem quer criar
bem os filhos ou desfrutar a doce aposentadoria de magistrados e milicos
inúteis. Você morando numa superquadra pode (como no meu caso)dar de cara com
vizinhos célebres como o questionabilíssimo Joaquim Barbosa,ex-ministro do
Supremo. Morar numa superquadra pode ter equivalência com cariocas que residem no Leblon que numa ida à padaria podem cruzar
com “celebridades” globais em chinelos de dedo. Só que,no caso de Brasília,você vai cruzar com “personalidades” de terno
e gravata até na alma,todos edulcorados por comendas, carros oficiais, verbas
extras- inclusive auxilio-moradia- e
tantos outros penduricalhos que fazem essa gente amar esse estilo de vida onde
nós pagamos as contas deles.
Apesar disso tudo
me ufano de ter morado em Brasília pelos pássaros que batiam nas minhas amplas
janelas, pela larga visão de verde e quadras esportivas no meu horizonte, por
estar a alguns passos de padaria, farmácia, supermercado, lanchonete e
restaurantes como o “Carpe Diem” que naquela época era bem gostoso.
Mas tudo isso era
fantasia que a brisa primeira levou. Porque Brasília me deu isso fugazmente.Me
regurgitou de sua máquina obscura e cheia de meandros burocráticos.Me iludi e
sei disso. Achei ser possível fazer o que na verdade ninguém queria que eu
fizesse. Mas esse é outro capítulo que nem vale a pena contar.
Noves fora,esse
estilo de vida de morar nas superquadras, custa muito,muito caro.Os aluguéis
são elevadíssimos e comprar um apartamento por ali só com bolso de magnata.Lógico que, nem é preciso dizer,deputadas criaturas e humanoides senadores são
muitos dos proprietários dos imóveis da região pois mesmo quando apeados dos
mandatos se acostumam com as benesses daquela ilha da fantasia.
Mas, com tudo
isso, não vou cuspir jamais no prato em que morei. Vivi feliz, respirando
altivo mesmo com o clima seco e o suor na testa ,resultado da curta caminhada
que fazia do apartamento ao trabalho. Até isso era bom. A proximidade com o
trabalho num lugar onde poucas vezes vi – paradoxalmente- tanta gente
competente com vontade de fazer e tanta gente falsa, inepta, bajuladora e
traíra. Os contrastes humanos sempre tecendo nossos planos e panos.
De Brasília
guardo a melhor fase de meu derradeiro casamento. Guardo a bicicleta verde
com a qual fiz enormes passeios por todos os cantos turísticos e não turísticos
da capital federal. Me desfiz dos móveis e utensílios brasilienses a não ser
uma bergere vermelha onde me espreguiço pra ler e ver Netflix. E foi sob a tal temida (pelos fascistas)
égide vermelha que voltei a Brasília depois de 8 anos para ( mais uma) posse do
Lula. Revisitando velhos cenários mas distante das superquadras, mimado por uma
grande amiga bem próximo do Jardim Botânico brasiliense , me enchi de novo de
esperanças que jaziam perdidas. E no meio delas, desigualdades e injustiças à
parte, resolvi encher o peito e proclamar aqui com gosto : ainda me ufano de
ter morado em Brasília. Aquela que poderia – mas só é para alguns- um sonho
feliz de cidade. Fora da realidade.
Ricardo Soares, 24 de fevereiro de 2023
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