O COZIDO PORTUGUÊS
O COZIDO PORTUGUÊS
A
foto, já esmaecida pelo tempo, deve ser de 1972 ou 1973. Nela, quase todos sorridentes, a família se reunia atrás da mesa
ovalada na sala da casa do avô e ao redor de um suculento cozido português.
Mesmo com a foto já desgastada pelo tempo quase que dá para sentir o
maravilhoso aroma do prato que era a especialidade do velho alentejano.
Na
foto, além do avô, a tia mais velha e o seu marido e as outras duas tias além do meu pai, minha
mãe, eu e minhas duas irmãs. Dez pessoas que meio século depois se reduziram a
duas que nem de longe se lembram do cheiro do cozido português.
Aquela
quantidade de carnes fervidas com legumes e sabor inigualável era quase um
convite ao congraçamento numa família que tinha lá suas diferenças que , aliás,
nunca foram resolvidas e assim foram levadas aos túmulos de todos eles,
separados agora por centenas de quilômetros de distância.
Ninguém
guardou a receita do cozido. Nem eu e nem uma das minhas tias quase centenária.
Somos os únicos sobreviventes daquela efeméride familiar fotografada. Vocês
podem achar que fazer um cozido daqueles é mera questão de arrumar panelões e
ir jogando dentro legumes e carnes a bel prazer. Não se trata disso. Há
afinação e arte na feitura de um cozido português e de tudo aquilo só restam
mesmo os panelões meio enferrujados e esquecidos num cômodo escuro da casa de
minha tia quase centenária.
Agora
nós dois, saudosos das mesmas lembranças,
não comentamos nada a respeito mas sabemos que nos fazem falta as mesmas
coisas. Os velhos tempos, os velhos acontecimentos que pareciam passar muito
mais vagarosamente do que esses tempos agitados.
A tia agora quase nada escuta e por
pouco escutar , pouco fala . Perdeu o gosto pela palavra . Eu, de tanto usar a
palavra ,também me dissocio dela visto que vou chegando à conclusão que não há
muito a ser dito. Já fiz 60 anos e com essa idade já falei demais.
Os
encontros mensais entre eu e a tia Ailitto são diálogos de silêncio. Respiros
entrecortados de goles de vinho tinto que ela sempre gosta. Um ou outro
monossílabo que dá conta de nossos mortos e da recente constatação de que agora
ninguém lembra mais deles visto que as lápides do cemitério onde estão foram
todas roubadas. Por conta disso a tia até deixou de pagar o jardineiro . Que as
ervas daninhas tomem conta do que sobrou.
Domingo
desses fui surpreendido com uma surpresa da tia Ailitto. Disse que me esperava
para a ressurreição do cozido português. Estranhei pois estava certo de que ela
não tinha a receita. Mas compareci, pontual dominical.
Toda
a diminuta cozinha cheirava muito bem e enquanto eu esperava o cheiroso cozido
ficar pronto folheava um jornal antigo na sala e tomava o que a tia chama de
“aperitivo”. Sempre um Campari com salgadinhos de pacote.
Paciente
e vagarosamente a tia põe a mesa. Os melhores pratos, melhores copos e taças
sobreviventes de baixelas antigas. A tia põe a travessa de arroz sobre a mesa e
avisa que não trará o panelão pois pesado e fumegante oferece risco no
transporte até a sala. Gentil que sou ofereço encher o prato dela e o meu e
traze-los para a mesa desde a cozinha.
O
antigo relógio cuco daqueles tempos ainda funciona impávido na sala. Olho com
saudosismo para ele enquanto me dirijo à cozinha com os dois pratos nas mãos. O
meu e o de minha tia Ailitto. Os coloco na pia para poder destampar o panelão. Então
levanto a tampa e sobe aquele vapor cheiroso que aos poucos se desanuvia .
Quando olho pra dentro do panelão percebo dentro dele uma pequena mesa ovalada
ao redor da qual estão todos os nossos mortos , sorrindo e levantando um
brinde. Correspondo , encho os pratos que estavam na pia , volto à mesa e coloco
em nossas taças um vinho daqueles tempos
onde todos estavam vivos . Não foi preciso dizer nada para que a tia Ailitto
entendesse tudo.
Ricardo
Soares, 9-4-2023, 4h 54 minutos.
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