Síndrome de Vanessa viajeira

 

SÍNDROME DE VANESSA VIAJEIRA

Obviamente que viajar não é dar voltas sobre si mesmo. É ir além de si mesmo,  uma forma de descobrir a si mesmo. Noves fora a nulidade desse meu raciocínio inicial  devo dizer que apesar de sempre ter amado viajar – profissionalmente ou não -  fico com horror de encontrar certo tipo de “viajante” . Ou o tal “turista profissional”, nada acidental , que cronometra o que deve ver, o que deve consumir, para onde deve ir junto a hordas muitas vezes incivilizadas.

            Como Paul Theroux, o meu “escritor de viagens” preferido, eu detesto o tal turismo oficial , predatório e descontextualizado.  Diz o escritor na abertura do seu  “Até o fim do mundo”  : “ em uma época de turismo em massa ,todos viajavam para ver as mesmas coisas, e parecia que um livro de viagem tinha de ser sobre isso(...) um livro de viagem era uma coisa chata , escrita por um chato e lida por outro chato”.

            As viagens tem a ver com movimento não só externo , com um “experimentar” de tudo ,  sem omissões de incertezas , medos, desespero, barreiras linguísticas, traduções equivocadas, ônibus enguiçados. A omissão disso e muito mais  é uma maçaroca fria e pasteurizada para ser vendida por agências de turismo. Perdão se parece pedante , mas tenho horror a excursões que levam os tais “turistas” para lugares previamente selecionados, mostrando uma única e pasteurizada realidade. Aquele treco de ir a Paris para dar rolê na Galeria Lafayette e comprar perfumes. Cruz credo.

            Cada qual que viaje do seu jeito você pode responder. Verdade. Mas, a mim não interessa ir onde todos vão agora. Por tudo isso é que a televisão me tira cada vez mais o prazer de visitar “pontos turísticos”. Visitei o Jalapão antes da sua “divulgação”. Assim foi também com o morro do Careca em Natal ( muito antes da hedionda avenida que leva ao local) e com São Miguel do Gostoso no mesmo Rio Grande do Norte, com a praia nudista de Tambaba na Paraíba, com o vale do Matutu(MG), as trilhas da cidade de Cunha(SP)e a agora lotada ilha de Fernando de Noronha.

            O que quero dizer com tudo isso ? Simples : quanto mais divulgação mais predação, mais turismo de massa, mais som alto ,birita , música ruim e esculacho. Isso é ser elitista ? Não , é ser preservacionista. Deveria ter controle regulado em áreas sensíveis à visitação. Ou em todas elas. Porque definitivamente o tal “turista aprendiz” brasileiro não sabe se comportar nem em lugares públicos, quanto mais em santuários ecológicos. Exceção talvez seja Bonito (MS) onde os passeios são caros e a fiscalização contra predação bastante severa.

            Todos os lugares que visitei em décadas passadas mudaram para muito, muito pior. A única exceção (pasmem!) talvez seja Boa Vista , a capital de Roraima, que apesar de prefeituras e governos estaduais corruptos mudou para melhor . Passei uma longa temporada por lá em 2002 e ao voltar em 2018 me surpreendi positivamente. No mais tudo vai virando palha com o perdão das generalizações.

            Como viajante uma das minhas intenções é  estar fora de alcance  o que é cada vez mais difícil nesse mundo de smartphones, redes sociais, sinais fortes para enviarmos mensagens fracas. É a vontade de sumir que faz muita gente viajar. Fiz isso muitas vezes, consegui sim, e não me arrependo mesmo quando penso que me embrenhei tanto que se o jipe tivesse quebrado eu estaria ferrado. Foi assim na Patagônia, nas cercanias da praia de Exu Queimado (RN) em trilhas estreitas e cheias de espinhos nas muitas chapadas que pouco chapado eu conheci.

            O legal disso tudo é ir sem ideia de quando vai se voltar.  Sem saber se terá água quente, comida decente, pouso seguro. Num mundo cada vez mais globalizado e integrado me avilta saber que sempre se pode ser achado.  Diz o mesmo Theroux em “Safári da estrela negra” que “a África é um dos últimos lugares da Terra onde alguém pode desaparecer. Eu queria isso.  Que os outros esperassem. Tinham me feito esperar muitas vezes, durante muito tempo”.

            Theroux conhece a África muito melhor do que eu que viajei apenas pela África do Sul e por Angola. Mas, posso garantir ao escritor americano com sobrenome francês, que no Brasil ainda existem lugares onde se pode desaparecer como na África o que é um paradoxo. Bom para o viajante profissional que não tem o perfil de turista , mas ruim para populações desses grotões que são desassistidas de tudo como se vê em muitos recantos amazônicos.

            Para encerrar essas mal traçadas linhas pseudo- aventureiras vou citar , estranhamente, um outro escritor. Este, um craque do gênero terror. O nome dele é Clive Barker e num dos seus impressionantes contos ( “Os Filhos de Babel”) ele retrata uma tal Vanessa que nunca pôde resistir à estradas sem placas de sinalização. Perdida numa espremida, íngreme, árida e estreita estradinha de uma ilha não turística da Grécia(“ a trilha que levava a Deus sabe onde?") ela queria estar o mais longe possível de multidões. O caminho a leva a incríveis e inacreditáveis situações. Querem saber quais? Corram atrás do conto porque aqui eu não conto. Mas sou uma versão masculina e mais velha da Vanessa : sempre quero ir mais longe.

Ricardo Soares   24 de agosto de 2023, 17h25 min

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