NOSSA FILHA E O BAMBUZAL
NOSSA FILHA E O BAMBUZAL
A
gente teve uma filha. Filha do relho e do engasgo que foi a nossa relação
tóxica. Mas, era uma filha linda e bem amada com seus cabelos lisos e seus
brinquedos retos, limpos, quase sempre escondidos.
Você sempre lavava e escovava os cabelos
lindos, escuros e lisos de nossa filha como se ela fosse uma espécie de curumim
do banhado, uma criaturinha sempre molhada do rio que perto de casa havia com
suas garças, maritacas , capivaras.
Nossa filha olhava a fauna e plantava a
flora e assim podia ter tantos nomes como tantos deles haviam naquele tempo
onde a gente se amava e contava segredos um ao outro enquanto nossa filha
olhava e tanto apreendia com flores miúdas e carnudas entre os dedos.
Sempre vou me lembrar de você escovando
os cabelos de nossa filha, ricamente lavados com uma mistura de camomila e você
até se dava ao luxo de passar os dedos de sua mão entre os cabelos de nossa
filha enquanto escovava e depois penteava ao mesmo tempo que cantava canções antigas da época de uma avó
materna eterna.
Um vento soprava vindo de longe, de trás
da varanda e passava entre os cabelos de nossa filha e ia para longe, passando
também por dentro de mim e me revirando , me enchendo de histórias que eu nunca
tive e nem terei a capacidade de contar.
O vento balançava um consistente
bambuzal vizinho, bonito, forte , dando pinta que seria eterno e que jamais se
vergaria. Mas, nenhum de nós ia andar por perto dele com medo das cobras que
nunca vimos , mas que diziam habitar o miolo dos bambuzais.
Nossa filha tinha os cabelos
penteados e olhava para o bambuzal e
assim fez no dia que cheguei para visita-la, eu já separado de você depois dos
anos e meses e dias tóxicos que promovemos um para o outro . Apesar do amor,
mas o amor não pode tudo , o amor não basta, sempre dizia você. Apesar
inclusive de nossa filha tão linda feita com tanto amor.
Nesse dia cheguei todo civilizado ao
galpão onde tantos cartazes e fotos gigantes eram penduradas em varais. Fora
convidado para uma modesta festa para a nossa filha e vinha com um modesto
presente entre as mãos e a esperança de reatar grudada no coração. Vinha com
esperança e com fé pois naquele dia seu novo companheiro não estava. Havia
partido pra fotografar uma guerra distante e as fotos se somariam a tantas
outras enormes penduradas nesse grande galpão onde você agora habita e é musa e
mote principal das fotos de seu novo companheiro. Dizem que ele também cozinha e passa roupas ,
mas daí já é perfeição demais pra um homem só.
Esse
homem começou a roubar você de mim justamente te fotografando na época em
que uma mina de mágoa te escavava por
dentro e a mim também. Antes que a mina nos ruísse totalmente por dentro
fechamos as portas dela e fomos buscar novos rumos. Só anos depois fui saber que você já estava com
o fotógrafo quando me deixou , partiu e levou a nossa filha.
Agora estou aqui comemorando o
aniversário dela, sorrindo para você e recebendo sorrisos de volta com tanta
gente próxima torcendo para que a gente se entenda de novo. Há aqui também um
bambuzal por perto. Que verga , mas não dobra nem com vendaval graúdo. Nossa
filha sorri também debruçada entre os brinquedos e você resolve me guiar e
mostrar com jubilo as muitas fotos suas ( imensas e bem tiradas) que estão penduradas
nos varais desse galpão onde ao fundo se vê um bolo de aniversário sobre uma
mesa colorida com muitas bexigas em volta.
Vi uma, vi três , vi dezenas de fotos
suas tão linda com seu rosto perfeito e seus cabelos negros e escorridos como a
nossa filha. E cada foto sua que via , naquele turismo afetivo que não me
pertencia ia me intoxicando de um ciúme grande, forte, poderoso porque tudo
retratava um amor que não tivemos. O nosso imenso , porém tóxico. O seu atual
um futuro próximo, uma sensação sadia , uma brisa que se infiltrava entre os
bambus não lhes pondo medo.
E assim quanto mais eu via mais me
enfurecia e fui tomado pela certeza de que nossa história era mesmo caminho sem
volta enquanto a sua com o fotógrafo só florescia. Súbito me vi um homem com cinco, dez , vinte e cinco mãos e todas elas
rasgavam aquelas fotos para seu horror e desespero. E quanto mais você gritava
mais eu rasgava como se com meu gesto eu pudesse estragar todo o amor que o
fotógrafo sentia por você e vice-versa.
Rasguei muito e acho que chorei enquanto
rasgava. Creio ter ferido as mãos, mas agora não me lembro. Lembro só de seu rosto, uma máscara de horror
e incredulidade diante do meu ataque de ciúme furioso. Quando depois de muito tempo
olhei em sua direção você mesma retirava restos das fotos- cartazes que
sobraram e os rasgava com suas próprias mãos. Aparentemente sem perceber nada
nossa filha estava debruçada no chão absorta em seus brinquedos que simulavam
uma cozinha. Olhando para ela a convidei a vir comigo , mas você , serena,
disse só assim :
--- Você vai ficar com a mamãe.
E se você assim fazia é que na verdade
filha alguma havia e entre o bambuzal que agora vergava o passado estalava os
bambus com sua imensa boca de crocodilo contrariado. Quem foi que disse que o passado não faz
barulho ?
Ricardo Soares, 5 hs e 32 minutos, 5/12/2023
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