A LÍNGUA DO MEU CÃO FALOU
Diante da generosa acolhida a essa poesia - de amigos virtuais ou não- resolvi postar ela aqui por escrito para quem quiser ( ou não) acompanhar a calorosa leitura que dela fez o poeta Celso Alencar. Me surpreendi em recordar que ela já tem mais de 20 anos e passou boa parte deles perdida num caderninho submerso na minha eterna bagunça. Achá-la me deu certo alento e resolveu um problema que era dar título ao primeiro livro de poesias que pretendo publicar depois de 40 anos. Se fiz bem ou não em resgatar não sei . Mas sei que poesia só existe quando vem à luz. Submersa não serve para nada.
A LÍNGUA DO MEU CÃO
FALOU
A língua do meu cão falou
Que o céu que cobriu a tragédia do Conselheiro
(feito de papel de barbeiro,arbustos secos,pólvora
velha,poeira na retina)
Encobriu outros tantos desacertos e desatinos
Pois assim é a vida seus meninos
Chaga na balança ,peso fora do esqueleto
Fome que é tanta
Tanta é a serventia
Pois assim é a lingua do mundo
Assim a língua que servia
E a língua do meu cão falou
Que o computador desprogramou
Perdão, falha, sentimento
Encheu de vírus os pedidos de abraços virtuais
E cancelou encomendas de suspiros durante o mês de
janeiro
E deletou Iemanjá do dois de fevereiro
E a língua do meu cão falou
Que dois é pouco, três é pouco e dez é absurdo
Que no vocabulário moderno não existe a palavra
aumento
E que tanto faz se a caloura
É uma aberração ou sereia
Pois o trote visa o gozo
O gozo visa o consenso
Consenso vira zona
Zona vara a noite
Noite vara a pica
Pica molha e balança
Conduz o velho cometa
Viagem ao centro do útero
Rios que multiplicam placentas
As gelatinas dos homens
O mel do melaço do coito
O uivo que rompe o sereno
O sonho do homem pequeno
A mão que derruba a chaleira
O dedo que disca o fone
O dedo que isca o mouse
O mouse que busca o veneno
O mesmo pedaço moreno que enfeitiça as nossas costas;
Coqueiros tropicais feitos de areia
Guardados nos vidrinhos da memória,
É outra história,é outro rumo, é outra cena
Por isso a língua do meu cão lança o dilema
Pois seu dono está tomado
Pela burca azul do Afeganistão
Pelo mais profundo descrédito cristão
Pelas marcas no lombo que me deu o destino
Que me tirou alguns dentes, os timpanos, os sonhos de menino
Assim , eu quero compensar chovendo
Pois não faço nada acontecendo
Entre meus dedos de poesia
Com péssima caligrafia
Quando fico surdo e um foguete cai
Quando meu cão
sai e a noite esfria
Quando estou só aqui , com a geografia
Sem saber o que perdi na Venezuela
E deixei na Guiana
Sem saber que a coleira do meu cão não é bacana
Veja que ninguém me chama e ninguém me quer
E eu leio pouco o Baudelaire
Com os olhos no gordo do Antonio Maria
Outro infeliz escravo de sua própria poesia
Ninguém me beija e não estou bento
Ouço ao longe o latido do meu cão
E não me aguento : vivo para as horas
Viro um alvo soturno
Preencho errados meus dados
Faço piercing com os anéis de Saturno
Minha escrita não cabe na folha
Minha folha não cabe na linha
A linha não cabe na mão
A mão parte minha espinha
A foto que fiz foi vazada
A luz que prendi escapou
O sonho sobe uma escada
A escada pede um andor
O andor não condiz com
meu santo
Pois meu santo é avarento
Economiza no calor
Pois teme o sofrimento
Ajuda os que estão limpos
Odeia o lazarento
Limpa as rugas com lavanda
Perfuma tudo que é vento
Busca no olho do bicho
Um resquício de sentimento
Por isso fala a lingua deles
Em perfeito entendimento
E é por tudo isso que a lingua do meu cão falou
Que a hora do santo
calar
É a do demo cruzar o rio
Acima da linha da cintura
Pois assim é a pintura
A lingua do meu cão falou
Que morderá a moça aflita
E a velha manca
Rosnará ao ciclista, ao carteiro,ao trabalhador
Baterá um cartão de ponto
Não pensará no futuro
Pois a lingua do meu cão
Falará, falará, falará
Muito depois de cortada
Pois é lingua única
Feita de matéria preta
Uma lingua que atira
Muito antes da espoleta...
***
02/02/2003 -
Fazendinha, Granja Viana, Carapicuíba, Sp
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