Justiçamento

 



                                            Justiçamento


            JUSTIÇAMENTO

Não era uma casa. Era quase um barracão decaído, coberto por uma estrutura velha e metálica. Ficava em um aclive , no alto de uma curva enlameada, se é que vocês me entendem. Era o tipo de lugar no qual em dias chuvosos como aquele só se podia subir. Descer era  risco de quebrar a bacia.

            Da primeira vez que viu aquele barracão Tenório tinha 16 anos e é como se o conhecesse há muito tempo embora fosse a primeira vez que o avistava. Todo o barracão estava mal pintado de um verde desbotado e um vaso rachado com cactos mortos ficava do lado direito da porta de entrada .

            Tenório acompanhava um grupo de quatro homens, todos a cavalo como ele, que chegaram ali naquela manhã friorenta para convocar o dono do barracão a ir por livre e espontânea vontade até a delegacia de Nova Bantu prestar depoimento. Se não fosse por bem iria por mal, mesmo que todos descessem arrastados aquele barranco com o tal risco de romper bacias.

            Apolinário, o delegado, foi o primeiro a descer do seu cavalo. Tomou a frente da comitiva e esmurrou a porta sem piedade gritando o nome  do dono do barracão :

            --- Aparecido ! sai daí homem senão eu arrebento essa porta. Ou mando bala nela agora mesmo!

            Aparecido saiu com as mãos meio para o alto e a cara amuada de quem tinha acabado de cair da cama. Os cabelos grisalhos estavam todos mexidos e ele só vestia um macacão puído com uma camiseta que um dia fora branca por baixo de tudo.

            --- O que foi delegado , o que você tá fazendo aqui com esse povo?

            --- Bota um agasalho e vamos embora para a delegacia na cidade.

            --- Mas, por que ?

            --- Não faça perguntas e vamos logo!

            --- Mas, por que ?

            --- Nem no caminho eu te explico. Só na delegacia você vai saber.

            Resignado e assustado Aparecido colocou sobre o macacão um casaco azul fedorento com manchas de ovo e de graxa e todos foram descendo o barranco com muito cuidado sendo que o primeiro que caiu foi o próprio delegado. Os cavalos cautelosos seguiam logo atrás.

            Chegaram sãos e salvos ao fim do declive e o delegado com a bunda suja de lama montou primeiro apontando um burrico onde Aparecido devia subir pra chegar na cidade.  O cortejo seguiu depressinha cortando a paisagem fria e chuvosa que Tenório tinha a impressão de já ter visto, talvez em outra vida embora não acreditasse em assombração.

            Quando a estradinha chegou ao lado daquele pequeno Vale do rio Monjolo o delegado Apolinário pareou seu cavalo com o burrico do Aparecido e sem mais sacou seu revólver reluzente do qual se orgulhava e mandou um tiro no meio da testa do dono do barracão. Estavam do lado do precipício e todo mundo parou assustado. O delegado vira para o jovem Tenório e diz :

            --- Moleque, ajuda o Bráulio a jogar esse traste abismo abaixo!

            Foi só aí que Tenório entendeu que para poupar tempo e dinheiro o delegado deu seu próprio veredito sobre a acusação contra o Aparecido e fez seu justiçamento. Tenório tinha  16 anos e é como se  conhecesse há muito tempo todo aquele cenário , o tiro,  a queda do corpo no vazio do abismo . Todo o barracão seguiu mal pintado de um verde desbotado por muitos e muitos anos.

9/12/2021- Granja Viana , Carapicuíba, São Paulo

           

            





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