SER VELHO, ACORDAR MENINO
SER VELHO, ACORDAR MENINO
Dizem
que eu tenho 64 anos, mas hoje eu acordei menino estranhando o calor, não
entendendo quase nada e me perguntando quando foi que tudo começou
principalmente esse negócio de escrever, ler, se questionar para ser infeliz
pois quanto mais vivo mais acho que só aos alienados é dado o prazer da paz de
espírito mesmo que mergulhados na mais profunda ignorância.
Dizem
que tenho 64 anos e hoje acordei com a notícia de que mais um bom escritor se
foi : Paul Auster. E aí falam “que Deus o receba”. E aí, como Auster, eu pergunto
: que Deus ? que recebimento ? que passagem para o outro lado da vida ?
Por
tudo isso e um pouco mais eu acordo com
64 anos, mas hoje despertei foi menino mesmo. Aquele que deitava num chão de
ladrilhos vermelhos no quintal da casa periférica e sob uma parreira de uvas,
entre as frestas , via o céu azul e perguntava o que seria de mim no longínquo ano
2000. O longínquo chegou e passou e muito do que imaginei não se consumou. Por
outro lado outras surpresas vieram. Inclusive ter o prazer e a sensação de aos
64 anos ter dias de se acordar menino.
“O
menino é o pai do homem” disse um dia o William Wordsworth e eternizou o
Fernando Sabino no seu memorável “O Menino no Espelho”. Hoje, aos 64, me sinto
o menino no meu próprio espelho e agradeço ( ao senhor do céu, a Buda a São
Francisco, aos meus pais ?) acordar por vezes com essa sensação. Sim , porque
apesar da morte do Paul Auster, dos conflitos no Oriente Médio, da violência
nas ruas e no trânsito, consigo externar, mesmo que mal e porcamente, tudo
aquilo que sinto nas minhas traçadas linhas. Afinal escrevo porque preciso,
preciso porque não estou pronto como diria o poeta Paulo Leminski.
O
dia amanheceu bonito. Vem por aí uma onda de calor e algumas pessoas vão morrer
de dengue no planeta que hoje levou o Paul Auster. Mesmo que poucos leiam o que
cá redijo, mesmo que cada vez menos os escritores sejam lidos hoje eu acordei
menino e não lamento o tempo que julgava perdido. Todo ele foi mesmo para
constatar que ao dizerem que eu tenho 64 anos eu possa rir e lembrar que
ninguém tem 64, 73 , 47 ou 33 se conserva dentro de si a capacidade de as vezes
na vida acordar menino.
Ricardo Soares- 1 de maio de 2024
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