ANJO NEGRO
( À guisa de introdução : achei esse texto perdido e amarelado entre velhos alfarrábios de juventude. Escrito em 1992, tinha eu 32 anos e não sei dizer se é um conto ou uma crônica. Fica a gosto do freguês. Só sei que achei significativo. E reparto agora o que até outro dia eu nem sabia que existia)
Anjo negro
Negro anjo negro, de asas
de negras penas coladas com cera, sentado no parapeito de minha janela. Negro
anjo que olha para dentro do meu quarto e escancara dentes brancos sujos de carne
de peixe. Olhos miúdos de anjo, dedos longilíneos das mãos , acenos que não são
dados , recados mandados com a expressão .
Não ao céu azul , aos mansos
sobrevoos sobre a represa Billings a procura de talões de velhos cheques roubados e jogados nos bueiros. Não às toalhas
felpudas do pós banho, a placidez melancólica de um fim de tarde no alto da
Serra da Cantareira com papos regados a cerveja morna nos bares do pós
expediente. Um anjo negro cheio de nãos.
Suas memórias de anjo
buscam em mim uma identidade. Não sabe em que vida me conheceu ou o motivo que
o faz estar agora ao meu lado. Não é meu anjo da guarda nem tem em mim um ponto
cardeal. Esse anjo negro subverte bussolas , se aninha calado ao parapeito
esperando um raio cortar o céu ou , quem sabe, um avião se espatifar contra um
balão.
Parece um anjo indefeso
tal uma galinha de pescoço pelado que não sabe como descer do alto do poleiro. Não é um
anjo de briga apesar do tronco volumoso , dos braços de halterofilista. Um anjo
exilado do seu inferno que olha para mim como um semelhante.
Ajeito o travesseiro, estou
de costas na cama e estico mais as pernas . O anjo cola a testa oleosa na
vidraça, seu bafo umedece o vidro . Quer me enxergar melhor o míope anjo negro.
A tarde é como tantas . Como
tantas e tontas outras tardes que se arrastam. Longas prestações de um
crediário que não sei onde comecei.
Presto atenção nos objetos do quarto. Um pôster de Veneza, um retrato
ampliado de Bariloche onde vi a neve pela primeira vez. Esse mundo não é o do
anjo. Ele parece estar saudoso de outras lembranças. Sabe-se lá se deixou
caldeiras ferventes e tridentes enferrujados para trás. Sabe-se lá se um dia
foi guardião de uma tribo de Gana ou protetor de uma alcateia de lobos
esfomeados. É um negro anjo triste que insiste em permanecer como um falcão
peregrino que depois de muitas horas de voo em direção ao hemisfério norte
resolvesse descansar diante de minha janela.
Negro anjo negro. Grafite
de lapiseira , piche do asfalto da estrada, negativo não revelado, foto
impossível de flagrar. Penso estourar um flash na cara dele. Quem sabe não o
capturo para sempre e não o exibo para todos em uma reuniãozinha de sábado a
noite quando os amigos estiverem discutindo cenas bizarras de cinema ?
Um anjo impossível de laçar.
Como eu sou para ele impossível de
alcançar. Ele sabe que não pode atravessar a vidraça . Eu sei que não posso tocá-lo
no parapeito . Mas, não usamos máscaras. Não simulamos jogos . Simplesmente
estamos aqui nos mirando . Sem admiração, estupefação , nem indiferença.
Simplesmente estamos aqui como o ar, poeira e ácaros que respiro.
Negro anjo negro de asas de
negras penas coladas com cera. Não há sol que derreta essas penas, não há vento
que o derrube do parapeito, não há solução para o efeito que se criou em torno
de nós. Ele não me anuncia nada , não é uma premonição nem fruto de mau olhado.
É um fragmento deslocado de uma dimensão diversa. Deixa meu espaço desfocado de
uma dimensão diversa. Deixa meu espaço desfocado aos olhos da profundidade e da
largura que concebemos.
Outros o enxergariam ?
Ele não deve saber . Eu não sei . Só sei que existe entre nós pouca luz, a
vidraça , o parapeito , o som de um piano distante e essa eterna falta de jeito
de nós dois. Em mundos tão distintos estamos dissociados de nós mesmo. E, a nossos
pés, pressentimos a altura de 13 andares, radares que não nos captam e a
certeza de que choverá na manhã seguinte.
Ricardo Soares , 27/02/1992 , 9 da noite
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