FINADOS

De diferentes maneiras, mas todas com reverência e respeito,os povos cultuam e homenageiam seus mortos. E todos nós , os cristãos, os ateus, os hinduístas, budistas ou muçulmanos temos os nossos mortos bem guardados dentro de nós.Paradoxalmente se esses mortos nos deram amor nos fazem querer mais a vida.Eu, hoje, homenageio meu pai , Juvenal Fermiano Soares, que me deixou em maio de 1996. E se o faço aqui de público é porque por motivos outros minha irmã Ana Regina conseguiu achar uma cópia perdida de uma crônica que escrevi no dia em que ele morreu. Essa crônica ia parar em uma antologia . Não vai mais pois apesar de ser uma sincera homenagem ao meu pai é muitíssimo pessoal. Está no blog agora pois desconheço instrumento de comunicação mais pessoal que os blogs hoje em dia. Sem mais justificativas deixo a crônica com vocês lembrando que foi uma das duas crônicas que mais me rendeu cartas de leitores no período de 1993 a 1998 quando eu era o cronista titular das quintas- feiras no caderno CIDADES.
O DIA DE PERDER O PAI

Depois daquela rua, atrás daquela pichação, existe um caminho que, sabe-se lá, deve levar a ponto de onde meu pai partiu.
Existe sol por toda cidade de Belo Horizonte, perdi meu pai nesta segunda-feira e se exponho minhas vísceras ao escrever isso é porque não me constranjo em admitir que, por mais altas ou pretensiosas que sejam nossas ambições materiais ou intelectuais, o momento da morte de alguém querido nos nivela. Passamos todos um filme tão rápido em nossas mentes e a dor às vezes é tão forte e fecunda que anestesia todas as outras.
Agora, então, vem a parte mais banal. É quando os soluços já são menores e a dor encontra um canto onde se alojar e fica a insuportável saudade do morto. Temos saudades até dos defeitos, das cismas, das teimosias. Lamentamos até a ausência das implicâncias, das manias. Nessa parte banal da dor, a gente filosofa pobremente, sem os argumentos de Nietzche, Sartre ou Spinoza. Sei só que a dor dói e você começa a conviver com ela como um joanete, uma agulha pequena, mas dolorida, que um mau cirurgião esqueceu em seu corpo.
Estou em Belo Horizonte agora e ontem meu pai foi sepultado em um cemitério jardim, entre grama e árvores. Por entre as copas mais altas escapava um grosso facho de luz solar que iluminava apenas o seu túmulo. Uma cena de filme de Visconti. Só que ali, deixando o túmulo e toda a sua vida em comum comigo para trás, minha dor era rodriguiana. Há sim, o momento em que um homem uiva, mesmo que reservadamente. A dor às vezes é um animal aprisionado que tenta se libertar de dentro do corpo.
Todos nós passamos parte da vida contando nossos mortos. Os reais e os imaginários. Os palpáveis e os etéreos. E, muitas vezes, certas mortes levam com ela parte da gente. Não há realmente como falar disso sem ser banal. E mais banal ainda é reafirmar a crença que mesmo os céticos como eu concordam com os que professam com fé várias religiões: é preciso amar e fazer algo pelas pessoas enquanto elas estão vivas. Meu pai se foi e minha consciência está tranqüila, mas até mesmo pequenas pendências não resolvidas ainda entalam na garganta como espinhas mal digeridas.
Meu pai morreu e eu não consigo ser poético. Meu pai morreu e eu não sinto a menor vergonha de expor isso a vocês; não quero piedade ou carinho. Quero apenas dar um toque a todos aqueles pais e filhos que lêem o que faço para que se olhem nos olhos e descubram o verdadeiro significado da palavra herança. Meu pai, por exemplo, não me deixa bens. Mas herdei um caminhão de virtudes que espero honrar e transmitir ao meu filho. Valores hoje pulverizados por um mundo estupidificado e individualista.
Meu pai não era um homem santo. O solo que está deitado não é consagrado e o nome do velho Juvenal por certo não vai batizar rua nenhuma. Nasceu no interior de São Paulo, viveu muito tempo na Capital e no ABC e morreu em Belo Horizonte. Era um homem mais do que comum, que adorava café, cigarros e gordura. Adorava também mato, árvores, homens e rios de almas limpas. Era explosivo, machista, por vezes grosseiro e até ignorante, mas honesto e solidário homem comum.
Depois daquela rua, atrás daquela serra, à direita de alguma cachoeira ou mesmo além de qualquer jardim, sei que não verei mais as sobrancelhas grossas do meu pai a se arquearem de preocupação. Sei também que por muito tempo sua tosse e sua mania de trancar e destrancar a mesma porta várias vezes vai me perseguir. Quem sabe ale me ajude a abrir outras portas da percepção. Portas que não me farão mais ter vergonha de assumir em público e por escrito que eu amava meu pai, por ser ele, acima de tudo uma enorme contradição. Uma contradição que partiu em 13 de maio, dia da libertação dos escravos. Quem sabe a coincidência não seja muito mais que uma simbologia? Vai em paz pai, que o filho ainda segue tuas pistas.

Ricardo Soares
Crônica publicada em 16/05/96 no Jornal “O Estado de S. Paulo”

Comentários

Anônimo disse…
Obrigada por ser meu pai e preencher todo o vazio que me deixaram. Te amo!
Beijos Ded's
Anônimo disse…
Diante de tudo que escreveu... nem dá pra falar muita coisa... apenas refletir...

Linda e emocionante crônica... A real pureza de sentimentos é encantadora!

E mais linda ainda é a declaração explícita da Andréa...

Bjo aos dois (o pai e a filha russa)
Lindíssima crônica! Faz refletir e sentir um turbilhão de coisas!
beijos :)
Alexandre Core disse…
Belíssima declaração! A melhor herança é mesmo a retidão.

Quando se vê em toda a parte a turba festejar feriados como Finados e Sexta-feira da Paixão entre pandeiros e caixas de cerveja, fico feliz ao ver que alguém ainda honra a memória de seus mortos com tanta dignidade.

Parabéns Ricardo!

Grande abraço,
Marrie disse…
Diante de tão genuíno sentimento não me sinto à vontade p/fazer nenhum comentário.
bjs e bom final de semana
Anônimo disse…
Bonito, Ricardo. Emocionante.
Lu Carvalho disse…
Li sua crônica chorando, hoje faz 9 anos que meu pai morreu, aprendi a conviver com a dor, mas a ferida ainda está aberta. Me identifiquei com muita coisa que vc escreveu, gostaria de ter escrito algo assim pra ele.
Vc é brilhante! Parabéns, mesmo num momento de dor,foi capaz de escrever algo tão lindo. Minha admiração por vc só cresce.
Beijão
tatiana hora disse…
ôoo, linda crônica!

bonito você falando do seu pai como um homem comum, geralmente idealizamos demais aqueles que partiram, e assim, homenageando um homem comum, fica mais bonito.

beijos
Ricardo Soares disse…
agradeço de coração à declaração de amor de minha filha andrea que abre os comentários e a todos os outros elogios sinceros e comovidos... especialmente porque esse tema e essa crônica- que se encontrava perdida - são pra mim muito especiais...
Anônimo disse…
Saudade sempre, tristeza tb. Não da para esquecer o cheiro do cigarro e do café e nem tão pouco da voz grave e do seu gesto de carinho qdo. ia no quarto nos dizer boa noite.
Boas e eternas lembranças do nosso pai...
Ah! que saudade da minha infância
onde eu era feliz e não sabia...
As lembranças sempre mexem muito comigo.
Bjs. emocionados.

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