SÃO BERNARDO DO CAMPO 2

No capítulo de ontem vimos um velho companheiro de Lula , acompanhado de vários outros velhos peões,descer de um ônibus para ir sofregamente ir de encontro ao presidente em São Bernardo do Campo. Mas o presidente não reconhece mais os rostos e vozes de seu passado.
São Bernardo do Campo ou anotações de um peão instruído
capítulo 2

Mas ovelhas calam presidente ? não, não calam . Ovelhas e bons cabritos são os que mais berram e quando berram nem sempre são ouvidos.O senhor foi um cabrito berrador , de boa cepa. Mas depois, afinal o que foi que aconteceu ? Mudou o mundo , mudou São Bernardo ou mudei eu ? Que memória curta presidente ! isso aqui se pretende uma novela e precisa ao menos ter um enredo pois senão os críticos que tanto o incomodam incomodarão a mim pois vão dizer que um filho de São Bernardo do Campo não pode dar uma legítima interpretação de seu município ; o município fabril, aquele que reza a lenda, ajudou a fundar um novo Brasil sem freios na boca e arreios na espalda. Um Brasil de funda fundação, alicerces lançados também por vosmecê que se lambuzava de torresmo e lingüiça de Bragança Paulista nas festas da peãozada.
Ai dos ricos presidente . Os ricos não conhecem o bom e gorduroso torresmo , não conhecem tilápia espinhuda e nem lingüiça de Bragança. Os ricos quando o senhor não os cortejava já andavam de Galaxie e LTD Landau quando o senhor desfilava em São Bernardo de TL azul calcinha. Os ricos nos gangrenavam enquanto o senhor pedia nas assembléias um mundo e um salário melhor e nos campos de futebol de várzea ria da cara dos patrões , especialmente aqueles gorditos que começavam a se assustar com sua oratória decidida e os seus modos grosseiros de peão que sabia comer frango com a mão ao contrário deles que comiam frango com garfo e faca, coitadinhos. Pobrezinhos sim pois tenho dito que há poucos prazeres no mundo tão cheirosos e completos quanto comer um belo frango a passarinho com as mãos. Ou comer com as “mões” que é para a brincadeira rimar e tudo voltar ao lugar de antes da chuva, do raio , do medo, das prisões e até das torturas.
Ah, mas hoje não pega bem falar das torturas porque a gente avançada e moderna que controla o país e a mídia não gosta disso não . Querem é olhar pra frente , falar que só se constrói um país dando as costas ao passado escuso. Querem escolher vários muitos bons cardápios e querem ainda escolher a melhor fatia do cuscuz paulista que agora é prato de rico e de quem acima de tudo esquece o passado. E dizem que o senhor quer esquecer o passado também .
Eu vou lhe dizer um troço. Eu não tenho essa certeza se o senhor quer esquecer o passado , mas lhe digo uma coisa : o senhor chegou a conhecer a causa das coisas e foi feliz nos tempos de simplicidade e dizem que o senhor mudou . Mudou o senhor ou foi o mundo que mudou ? Ora, eu não sei de nada, porque do alto de minha ignorância de peão instruído não sei de todas as malícias e das mazelas do mundo , não sei de São Raimundo ou São Nonato e sei um pouco de São Bernardo do Campo pois ali passei a maior parte de minha vida e ali rachei meu calcanhar grosso e caludo , ali estraguei e encasquei minhas unhas, ali cultivei esse meu chulé de pobre que talco algum arruma , ali criei gordura porque comi mal e depressa na pressa da troca do turno , ali cresci com minhas cáries e minhas mágoas e ali cultivei gota, coriza, reumatismo, uma certa artrose e uma porção de pelos nas narinas. Ali cultivei horas mal dormidas, vigiei o sono mau dos meus meninos, expulsei ladrões de bujões de gás do meu quintal. Ali perdi minha mãe, meu pai, vi padecer de bronquite a minha velha no meio do bairro fedido, esquecido pela prefeitura do sr. Aldino Pinotti , Hygino de Lima e tantos outros dos quais só me lembro porque nada fizeram por mim além de me pedir que pendurasse faixas com seus nomes em minha modesta varanda no tempo de eleições muito antigas e viciadas.
(continua amanhã)