ME AFOGO NO RIO DE JANEIRO

Desde a segunda quinzena de novembro de 2007 até os dias de hoje tenho vivido no Rio de Janeiro mais do que São Paulo. É como se estivesse transando com uma mulher com quem sempre flertei mas da qual jamais desfrutei e que subitamente tivesse me caído nos braços. Me sinto feliz por poder usufruir mesmo que tardiamente desta intimidade com um objeto de desejo tão antigo.
Apesar de ter colocado os pés ( ao que me lembre) pela primeira vez no Rio em 1980 , com 20 anos, sempre tive com a cidade a relação de ida- vinda sempre respeitosa , aquele sentimento que temos em relação a cidades com as quais temos afinidade, até amamos , mas pouco conhecemos.
Nunca me senti estrangeiro no Rio mas ao mesmo tempo nunca me senti carioca apesar de ter sido ali concebido em um hotel de Copacabana em setembro de 1958, aquele ano que nunca terminou. Nunca me senti mas poderia me sentir carioca? Lógico que sim se for levar em conta o lírico e sentimental raciocínio expressado por Vinicius de Moraes no seu belo texto “Estado da Guanabara” onde ele diz que “a verdade é que ser carioca é antes de mais nada um estado de espírito. Eu tenho visto muito homem do Norte, Centro e Sul do país acordar de repente carioca , porque se deixou envolver pelo clima da cidade”.
Pois eu me envolvi pelo clima, cheiro, aroma , maresia, adorável e detestável desorganização do Rio de Janeiro. E apesar de há muitos anos ter decorado a geografia da cidade e nem me sentir estrangeiro nela não desfrutava da intimidade que agora pareço ter com essa completa tradução da brasilidade.
Sinto pelo Rio agora quase a intimidade do amante cúmplice que dá um tapinha na bunda da amada gostosa na saída do Sambódromo como se dissesse para si mesmo e para a torcida do Flamengo :
--- Essa linda bunda que todos cobiçam tem dono !
Pois é assim que vejo o Rio. Uma cidade pra fora, uma cidade com bunda e com seios de bom tamanho e sem silicone pois estou falando do Rio e não da Barra da Tijuca , esse odioso país plástico e esquisito encravado no Rio com ganas de ser Miami.
Pois o Rio me provoca e me exibe essa bunda empinada e queimada pelas areias de Copacabana ou pelos passeios ao redor da Lagoa ou do Aterro do Flamengo onde mais de uma vez vi um dos seus escritores policiais mais conhecidos caminhando compenetrado em busca do detetive perdido.
O Rio evoca meu próprio passado remoto e minhas origens e pouco a pouco foi se tornando minha grande cidade preferida à beira de minha meia idade. Isso não quer dizer que seja preferida pra sempre. Mas nada no Rio é para sempre. Daí o seu fascínio e perdição. Daí o medo, daí aquela evocação ao suspiro e a estupefação diante de tanta beleza exposta. O Rio é um desvio de percurso diante dos caminhos errados que Deus andou inventando pra os humanos. O Rio faz a gente fabricar assim uma porção de frases feitas, uma enxurrada de estultices que tentam captar os sentimentos que a paisagem deslumbrante nos desperta em meio a tanto suor, sangue, pólvora, tiros e miséria. O Rio é a contradição da tradição. É a continuidade e a ruptura do Brasil tal qual o conhecemos. Um jogo da amarelinha , uma cabra- cega doida que nos deixa perder a direção das caatingas ou o rumo das fumaças cinzentas paulistas.
O Rio me faz dizer não à tentação barata dos bairrismos. E não me faz cair na tentação de querer comparar São Paulo com tudo aquilo que está ao redor da Baia de Guanabara. O Rio é um planeta e São Paulo é outro planeta. E planetas não se comparam pois compostos são de atmosferas, gases, cheiros, densidades e nuances muito distintas.
Eu digo hoje que sou carioca por batismo e adoção embora tenha nascido na Lapa paulista. Mas vejo os arcos da Lapa carioca como um cenário da minha infância. Imagino onde possa ter ficado nas brumas da lembrança o morro do Castelo ou em que ponto do Morro do Livramento nasceu Machado de Assis. Imagino os jovens tenentes caminhando na avenida Atlântica após a revolta dos 18 do Forte. Recrio a comoção popular diante do Palácio do Catete no dia em que Getulio morreu. Imagino Marlene e Emilinha diante da fachada da rádio Nacional e me pergunto quantos infelizes lamentaram as horas perdidas mirando o relógio da Central do Brasil.
Chego ao Rio de avião e é uma alegria porque” da janela vejo o Corcovado, o Redentor, que lindo”. Mas me encho de tristeza quando deixo o Rio de carro pela horrenda avenida Brasil e logo após Queimados, quando se mergulha na rodovia presidente Dutra, percebe-se que, de fato, o Rio ficou para trás. Porque o Rio é mesmo um estado de espírito leve que a gente lamenta deixar. Mesmo quando a cidade e suas violências a transformam num território minado a gente entende que mesmo o perigo e o medo mais paralisante de alguma forma são atenuados diante de tanta beleza. E aqui na verdade é hora de encerrar a crônica pois me vejo diante do mar carioca pensando no verso de um baiano que na verdade era um carioca. Talvez tenha sido ali , olhando toda aquela exuberância que Dorival Caymi tenha pensado que “é doce morrer no mar”. Eu , que sou mortal , não me arrisco a desvendar o mistério. Mas sou um bendito afogado pela exuberância do Rio de Janeiro. (madrugada de 24/03/2008)

Comentários

Anônimo disse…
Diante dessa crônica,Ricardo, só me resta escrever: sim, o Rio continua lindo, apesar de tentarem acabar com ele.

Sim, frase feita, mas é por aí.

abs
Luísa disse…
Este blog foi-me apresentado pela Ana Lúcia. Virei com mais tempo para conhecer melhor.

Até breve!
Anônimo disse…
O texto está a altura dessa cidade maravilhosa, e devido a ele já mereces o diploma de filho dessa terra.
Sou outro adotivo que há séculos encaminhou pedidos de cidadania carioca às autoridades competentes, boêmios e vagabundos da melhor qualidade.
O escritor é Luiz Alfredo Garcia-Roza de "Achados e perdidos", que até filme virou, perdi o medo de avião lendo com avidez as aventuras do detetive Spinoza por Copacabana.
abraço
zuca disse…
Salve Ricardo!
Passo pelo seu blog diariamente e gosto muitíssimo de tudo. Hoje você está particularmente inspirado. É o Rio de Janeiro? Eu, Kátia Klock e Luciana Trípoli sempre falamos de você com saudades. Grande beijo,
Zuca
jb disse…
Ricardo,
Temos algo em comum.
Também nasci (e ainda moro) na Lapa paulistana. Mais precisamente no Hospital São João Batista.
E sou louco pelo Rio de Janeiro, terra de excelentes botequins. Cagada histórica tirar a capital de lá.
Se puder, passe no Aconchego Carioca, na Rua Iguatemi, na Praça da Bandeira, pertinho da delegacia.
Vá lá, procure a Catita (cozinheira instintiva e talentosa) e coma um bolinho de feijoada ou de bobó de camarão. E escolha uma cerveja boa, que é o que mais tem lá.
Abraço!
Udi disse…
"O Rio é a contradição da tradição. É a continuidade e a ruptura do Brasil..." isso diz muito e de uma maneira lindíssima!
Udi disse…
...e o Led Zeppelin, concordo.
L-A. Pandini disse…
Ricardo, sem querer ser chato mas sendo: você nasceu no "ano que não deveria terminar", de Joaquim Ferreira dos Santos. O "ano que não terminou" de Zuenir Ventura é 1968 - aliás, o ano em que eu nasci.

Um grande abraço. (LAP)
Danitza disse…
Ei, Ricardo!

Recentemente estou neste ir e vir para o Rio, saindo de minha terrinha bairrista e buscando outros caminhos.

Ler seu post foi delicioso, me fez lembrar os sonhos de infância, quando meu tio contava da Lapa. Nem preciso dizer que foi o primeiro lugar que quis conhecer!!

Meus caminhos têm sido pelo Rio Antigo... Muita história contada nestes lugares. E claro! Toda a delícia que é a orla.

Qualquer dia desses tem um samba no Trapiche, hein!

Beijo grande da mineira, que também ama o Rio.
Unknown disse…
"as carioquices" realmente me encantam, sua analogia rio e mulher ficou bem interessante.

refletindo um pouco sobre esse sentimento de se sentir parte de um lugar do qual não nasceu é coisa de "química" mesmo.

estou morando hoje fora de minha terra natal, quando li seu post fiquei pensando: "porque não me sinto como parte deste lugar onde estou? igual como ele sente com o rio?" acho que ainda não bateu a "química", ainda estou na paquera, nos olhares, com esperanças ainda que um dia eu me apaixone por este lugar, rs

abraços!
ANA LÚCIA disse…
Rio é uma cidade sedutora tal como uma mulher deslumbrante que esconde alguns mistérios e revela toda a sua beleza.
Então gostou das tulipas! Vou fazer outra idêntica prá você e quando houver oportunidade lhe entrego. Encomenda, depois a gente negocia (sim ou não)...
Saudades.
Abçs,
Ana
Anônimo disse…
É isso. É assim também que me sinto aqui na MINHA cidade(e só por isso permito a você se enturmar com tanta paixão, ok?): amiga dos Machados, frequentadora dos botecos da Lapa d'outrora, cúmplice das prostitutas e dos travestis da Atlântica, contumaz devoradora de galetos na brasa da madrugada amiga. O Rio não tem idade, afinal. É o mesmo vento da maresia ininterrupta de sempre que continua a soprar e a nos inspirar. O vento de Noel, de Pixinga, de Vinícius, de Drumond, de Tim, de Rubem, de Leila, de Tom...
Você pegou o espírito, baby. Perca seu medo, deixa a vida te levar, entregue-se: Copacabana não te engana mais...
Oi Ricardo! Primeiro, obrigada pela visita em meu blog. Depois, sobre a sua postagem... O que dizer eu, então, da minha amada Salvador?

Axé pra você :)
E eu, louca para ir para um bom matinho...rsrsrsrs
"...Dia de luz, festa do sol..."
BJS!
Anônimo disse…
Your blog keeps getting better and better! Your older articles are not as good as newer ones you have a lot more creativity and originality now keep it up!

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