A CIDADE DA DESMEMÓRIA



A minha cidade está toda apodrecendo e eu fico falando de uma cidade do passado,daquela que só existe na minha memória. Nessa cidade de minha memória garoava muito mais e meus mortos ainda estavam vivos fazendo compras e tomando guaraná gelado no fim das tardes de verão. Os homens se abrigavam nas marquises e nos toldos dos cinemas e tiravam das lapelas flores que entregavam para as amadas.

A cidade de minha memória foi sendo soterrada ao longo dos anos por quilômetros de ganância, cimento, ferro, aço,vidro, esquadrias de alumínio e elevadores brilhantes. Sob essa nova ordem jaz soterrada a cidade do meu passado envolta nas abas de chapéus antigos, chales e chás das cinco em galerias elegantes. Atrás de sopeiras reluzentes e finos copinhos de licores caros eu vejo olhos azuis de avós antigas emoldurados por finas teias de tules remotos. Esses olhares evasivos fingiam não ver as retumbantes traições maritais ejaculadas em carnes africanas a conceber uma pátria de mulatos sadios e outros nem tanto.

Cheira a café fresco, moído na hora, essa cidade de minha memória , repleta de bondes, perfumes almiscarados, secretárias elegantes a usar cintas-ligas em garconiéres escondidas e furtivas. Até os esgotos eram menos malcheirosos e ainda haviam muitos córregos com águas límpidas que ajudavam na meditação sobre o Tietê,impávido colosso sereno a cortar a Paulicéia.

Essa cidade de minha memória pode ser sim a minha São Paulo .Pode ser uma São Paulo que de fato tenha existido ou uma São Paulo que habita apenas a minha memória. Uma cidade inventada pela minha vontade de habitar uma cidade ainda habitável e não escondida atrás, ao lado e sob o manto imundo de milhões de automóveis, caminhões ,ônibus, motocicletas.

Minha cidade falece, padece soterrada pelas máquinas e pela engrenagem de ódio, cobiça e ambição que a movimenta .Toda ela consumo, dinheiro, arrivismo , egos estelares. A cidade de minha memória tem estrelas a serem vistas por pessoas sentadas com cadeiras na calçada a espera de dias melhores que virão.

A cidade de minha memória tem menos câncer, menos enfarte, menos estresse, menos gente vagando pela rua embarcada no lumpesinato drogado e alheio à dantesca realidade. Garoa mais e de novo na minha cidade e não há camelôs nas ruas a apregoarem inutilidades chinesas e falsificações de todas as origens. A cidade de minha memória é autêntica e não tem ônibus lotados e nem torcidas futebolísticas doentes e violentas. Essa cidade não sofreu golpes de estado e nem motins operários e nem recebeu bombardeios aéreos de forças rebeldes insurgentes.

É uma cidade com passado e só cidades com passado tem vocação pra desfrutarem de futuros mais que perfeitos ao menos no tempo verbal avesso às intempéries. Quanto mais perto fico dessa cidade de minha memória , dessa cidade do passado, mais distante permaneço dessa maçaroca feia e desumana que é a cidade do meu presente que borra seu asfalto com sangue dos atropelados e viciados em velocidade todos os nada santos dias.

Nela, na nova que nada tem de novo, não me reconheço. A estranho, me distancio, me agonio. Aqui não verei tias antigas a olharem vitrines coloridas de fim de ano pelos boulevards e alamedas do centro. Aqui não verei bancários e funcionários públicos em ternos bem cortados a levantarem brindes ao ano novo que chega em bares estilo europeu com mesinhas de vime na calçada . Chuvas de papel picado não cairão dos prédios do centro porque o centro não existe mais. É como se um avião imaginário ,um avião pesado e não físico tivesse desabado sobre a área central da cidade dizimando as lembranças de homens, mulheres,jovens, velhos e crianças. A cidade vive o agora e já, o imediatismo das sensações que devem ser saciadas no ato.

Agora, nessa cidade da qual me distancio, uma janela dá em outra janela , uma porta em outra porta. As pessoas se esbarram, se chocam mas não se vêem nem se tocam, sequer espiritualmente. A cidade se esvai em seu próprio lodo muito embora o céu continue azul em tantos dias de forma que se olharmos só para o alto teremos a sensação de otimismo tão latente quanto cheiro de capim cortado. Mas o verde não viceja,não prospera,não brota. O homem cordial trocou de roupa, transmuta-se em brutal e sai por aí mostrando os dentes como cão raivoso no mar nervoso do trânsito-caos.

A que único e triste escoadouro tudo isso vai levar ? Como será viver cada vez mais numa cidade sem passado ? Da porta dos necrotérios continuam a sair rabecões conduzindo os mortos. Mas e os mortos dentro de nós mesmos para onde são levados ? Essa morbidez de poeta romântico não combina com a velocidade da minha já nem tão nova cidade da memória. Mas se não combinar é relativo. Porque ela quer ser moderna, atraente, especial e alto astral mas por outro lado revela a sombra atrás de tanto pseudo-luz. Minha cidade afinal reluz. Lentamente se apaga obsessivamente ofuscada por sua desmemória. Isso é , enfim, sua própria história ?
 

ps. tomando por mote o tema do post acima afinal quem se lembra de Terezinha Rodrigues,miss São Paulo em 1959 ? quais memórias enfim devem ser guardadas?

Comentários

Angela disse…
Ricardo,
Cá da minha insignificância penso que, isso tudo tem um vilão: egoísmo.
Feliz Ano Novo...
Abraço
Granja Carolina disse…
Ricardo, que belo texto sobre a memória.
Muito pertinente, memória evoca o que quero lembrar e o que quero esquecer. No planejamento urbano tipo higiênico, as cidades sempre querem esquecer os problemas sociais e assim fazem a expulsão dos habitantes indesejáveis.
Como a renovação se dá pela violência, separando de forma impiedosa o eu do mundo, todos os dias ficamos mais presos à solidão, na cidade cada vez mais cheia.
Nas artes, temos inúmeros trabalhos que registraram as transformações históricas da sociedade na virada do século XIX para o XX, com os seus preconceitos e ambições enganosas que nascem na aspiração social reprimida, portanto de um problema social.
Hoje vivemos a aspereza dramática da versão metrópole, reproduzindo de forma confusa, os velhos conteúdos.
O conteúdo “traumático” da vida quotidiana é escamoteado sob novas e abstratas embalagens. Internamente a falta de civilidade, e pior, sua falta de referência com o universo, não somente com a natureza, mas principalmente com a história, falseia o impossível ideal da lógica racionalista.
Com o advento da modernidade, mais precisamente com a remodelação de Paris, época de Napoleão III, ruas medievais deram passagem a grandes avenidas e ao planejamento moderno. Foi descaracterizando o passado, medieval através da idealização urbana, que se favoreceu o fim dos levantes populares e das barricadas de Paris pela burguesia sedenta de substituir o passado.
A nova ordenação criou avenidas e boulevares, muitos intelectuais, na época, concordaram com a necessidade de modernização, mas muitos também foram os que viram com nostalgia o desaparecimento da cidade antiga e de suas referências simbólicas.
As transformações econômicas através do rompimento estético, criaram na arquitetura e nas artes em geral, a possibilidade de estimular as vanguardas e seu vício revolucionário.
O pensamento idealizador, utópico, artificializou as estruturas urbanas, através das linhas retas e práticas de construções de prédios, esgotos, canalizações, calçadas e passeios.
No Brasil o pensamento moderno, na linha de Le Corbusier, possui estreitas relações com o pensamento de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Mas, ao mesmo tempo em que o advento da modernidade favoreceu as cidades, elas, passaram a causar estranhamento aos seus habitantes; a escala urbana já não lhes pertence, e agora precisam ser constantemente reapresentadas através de desenhos, listas de endereços, placas e tabuletas de ruas.
Em suma: a cidade necessita de uma mediação para ser lida, mesmo por seus habitantes. Os pontos de referências históricas, parte da memória simbólica de seus habitantes, agora precisam ser mediados, através do que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido, catalogado.
Este mediação, já não responde a memória da coletividade, mas ao mercado.
Neste contexto que o processo de apropriação do território é avaliado sob a luz dos interesses imobiliários e turísticos.
As especificidades dos lugares são transformadas em atrativos de venda, transformados em produto de consumo.
Tudo e todos devidamente empacotados para atender às novas demandas de uso turístico e de consumo do DEUS MERCADO, muitas vezes perverso, pois neste processo invariavelmente a população local é excluída de suas atividades quotidianas.
Um processo de autodestruição, um suicídio coletivo, fadado ao esgotamento e ao favorecimento de que todos os hábitos, habitantes e lugares se assemelhem entre si.
Num mundo complexo e em permanente mudança, fica cada vez mais difícil identificarmos quais são os saberes valiosos e úteis no longo prazo a serem preservados.

Somos uma sociedade profundamente traumatizada, tentando esconder o trauma nas infâncias roubadas, na adolescência esticada com cirurgia plástica, no mantra da música eletrônica em alto volume, no hedonismo exacerbado nos higiênicos Alphas.

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