UM OLHAR PARA ROBERTO PIVA NO ANIVERSÁRIO DA CIDADE QUE ESCORRE

Me despeço da cidade de São Paulo no momento em que ela comemora mais um aniversário, logo mais depois da meia-noite. Me despeço da cidade e me pergunto : o que comemoramos ? as nossas enchentes, os nossos alagamentos, nossa falta de tolerância, memória, respeito ? o que comemoramos ? o cinismo do nosso prefeito que vive pra cima e pra baixo dizendo que tudo está sob controle ? comemoramos o que ? a infestação por crack dos seus becos escuros, os seus delegados e policiais corruptos, a sua ausência de vida nas ruas, a sua praga incessante de shoppings e idiotas motorizados em centenas de congestionamentos ? comemoramos a indústria, comércio, bancos, serviços,restaurantes caros e emoções baratas ?
Vamos parar para pensar o que temos a comemorar  nessa São Paulo de 456 anos, uma cidade que volatizou sua própria garoa e cobra o espaço até pra gente poder pensar. Por certo não estamos aqui comemorando o meu pessimismo ou de milhares de outros que não conseguem ver ao redor de São Paulo nada que lhes devolva otimismo .Eis pois que a cidade escorre o seu combalido otimismo para as várzeas mortas que caem no Tietê, alegorias fedidas do parque Anhembi.
Me despeço da cidade. Vou ali até Luanda e já volto. Talvez procurar lá o que já não encontro cá. Talvez imaginar ou ver espaços urbanos que mesmo desordenados possam apontar em outras direções. Vou ali e já volto e penso que quando tento , do fundo do coração, procurar meu otimismo embutido dou de cara com notícias tristes como as que vi agora pouco no blog do poeta Ademir Assunção (leia aqui ) que anuncia que o superlativamente talentoso poeta Roberto Piva passa por graves privações num hospital da cidade que ele tanto amou . Piva (fotos abaixo) , este sim, é das mais completas traduções das incongruências e paradoxos da cidade . E está precisando de nossa ajuda pois como bem lembra o poeta Ademir Assunção artista não vive de elogio.

Leiam o que diz o Ademir :

"Roberto Piva, um dos maiores poetas brasileiros, está internado na enfermaria do Hospital das Clínicas, em estado precaríssimo. Piva tem 73 anos e sofre de mal de Parkinson. Segundo o poeta Celso de Alencar, que o visitou ontem, ele está num verdadeiro inferno dantesco.
Nos últimos anos, Piva teve suas obras completas reunidas pela editora Globo em três volumes: Um Estrangeiro na Legião, Mala na Mão & e Asas Pretas e Estranhos Sinais de Saturno. Sua poesia voltou a circular como um furacão, mas o poeta continuou vivendo em situação precária. É comum os amigos se cotizarem para comprar os remédios que ele precisa para manter os efeitos do mal de Parkinson num nível razoável. Artistas não vivem de elogios".


Fosse a cidade da qual me despeço provida de um minimo de senso de justiça e a prefeitura ou qualquer outro orgão oficial já estariam cuidando do bem estar do Piva. Pelo que ele representa. Sem nada cobrar dele. Sem nada pedir em troca. Poucos souberam e sabem amar e odiar essa cidade como ele. Como se lê nos versos abaixo do poema " A Piedade" :


as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas porque navio bóia? porque prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos


Não será pois o Apocalipse ainda mas como vamos explicar tudo o que vem  acontecendo em São Paulo, no Brasil, Haiti, no mundo no começo desse 2010 ? que malditos arcanjos de enxofre são esses que organizam passeios ciclistico e patuscadas oficiais enquanto a cidade escorre e Roberto Piva morre aos poucos, largado como o pó sobre os livros da biblioteca Mário de Andrade ? Eu vou para Luanda, sem meu chapéu de banda e já volto... mas juro que as vezes não dá vontade de voltar...

Comentários

Patricia d'Utra disse…
nossa Ricardo, profundo, bateu fundo. O que falar? beijos
Anônimo disse…
Ricardo,
E a editora dele? não pode fazer nada??
É a mesma pergunta que faço, deste outro lado do mundo, se volto?
abraço
Anônimo disse…
vixe, perdão esqueci de assinar acima
madoka
Alvaro disse…
Ricardo,fiquei de férias em uma praia bem longe daqui .quando voltei depois de 1 mes encontrei transito,muita chuva,pressa,individualidade o caos.Me pergunto todo dia o que tem aqui que eu preciso? onde eu estava , via as pessoas felizes com quase nada.Ainda vou cortar esse umbigo e me vou para bem longe daqui.
Caro novo amigo ,vá em paz que estaremos aqui torcendo por voce e por nós ,simples mortais.
Um beijo,
Alvaro
Anônimo disse…
que poesia horrível.
Lunna disse…
Meu caro, não te acho pessimista e seu texto mostra um lado da cidade que infelizmente fugiu ao controle porque se houve um tempo em que se desejava fazer por São Paulo, hoje só se pensa em fazer por si mesmo. Isso não é culpa da cidade.
E quantos as catastrofes naturais, não há porque explicá-la. O planeta é vivo tanto quanto nós e se nós passamos por transformações porque o planeta não o passaria? Nem sempre transformações são simples e fáceis e o resultado final em nossas vidas pode ser um desastre, na natureza então...
Quanto ao poeta em questão, não o conhecia. Da poesia brasileira pouco conheço, mesmo tendo estudado por aqui e adorando a língua e fazendo possível para evitar erros demasiado. A curiosidade ao ler os versos me fez querer mais e espero que a condição do poeta não se degrade ainda mais. Isso me fez lembrar Pessoa.
Grande abraço

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