EU, SARAMAGO E SAMARDÃ


No dia em que Saramago morreu eu disse no Facebook que o assunto (por sorte) iria render o dia inteiro como aconteceu. Ao morrer , sorry pelo clichê, levou  junto um pouco do melhor de literatura em língua portuguesa. Estive com ele várias vezes profissionalmente e não falo isso pra me ufanar de mim mesmo ou demonstrar importância que não tenho. Como disse no Face que voltaria ao assunto assim faço. Tive o privilégio de estar com ele porque durante anos atuei no chamado "jornalismo cultural" como repórter, editor, diretor e apresentador de programas no segmento sem falar da mídia impressa. Por conta disso estive com Saramago mais de uma vez e isso serviu para que eu deixasse de ter as falsas premissas que se tem dele. Nunca o achei mal humorado, mas seco como um martini seco, um ar seco de Brasília, onde está sempre ausente a umidade relativa do ar que é , nesse caso, senso de humor. Não que Saramago não tivesse senso de humor. Tinha, mas do jeitão dele.Seco. Exemplo : em um desses encontros , por ocasião da gravação de uma edição do programa "Literatura" para a rede Sesc/Senac de televisão ele me esclareceu sobre sua propalada aversão a entrevistas . Disse :"Não é que não goste de dar entrevistas. É que a todo sítio que eu vá sempre me fazem as mesmas perguntas".
Touché! espero não ter sido tão óbvio com ele e ,perdão pela falta de modéstia, não devo ter sido porque em nosso segundo encontro (por ocasião da gravação de um programa Roda Viva em 2003, recentemente reprisado, quando eu era um dos seus entrevistadores) a professora Leila Perrone Moysés gentilmente foi me (re)apresentar a ele que gentilmente disse que já me conhecia e tinha tomado muito gosto pelo nosso anterior papo televisivo.Mas a "culpa" pelo elogio não é minha . É da remota, perdida e esquecida cidadezinha portuguesa de Samardã, Alentejo, que tem acima desse post um dos seus ícones fotografados.
Meu primeiro encontro televisivo  com Saramago após um intervalo de gravação para um água e café corria apenas correto e protocolar quando sem mais nem menos eu lhe disse que "usei"  um livro dele ("Viagem a Portugal", edição ilustrada, editorial Caminho, Lisboa, 1985, foto abaixo) como guia de uma viagem a Portugal em 1999 quando percorri quase o país inteiro de carro. Ele estranhou e entre lacônico e ranzinza respondeu :
  --- Pois o livro não é um guia de viagem...

Pois lhe expliquei que o livro não era mesmo um guia de viagem mas serviu para me mostrar uma Portugal que eu não conhecia visto pela percepção dele, Saramago . E aí arrematei :
  --- Pois foi por causa disso que acabei conhecendo a pequenina Samardã ...
Súbito o rosto de Saramago se iluminou :
  --- Pois conheceste Samardã ? Nunca soube de alguém que tivesse conhecido Samardã. Muito menos por causa do meu livro.

 A partir daí a conversa com Saramago se deu em outro ritmo quando reacenderam as luzes. Ele se soltou não sei se por ter identificado um cumplice na remota aventura de ter conhecido Samardã ou se pelo fato que viu em mim pelo menos um entrevistador que tinha um minimo de conhecimento da obra dele para poder entrevistá-lo a contento. Lembro agora disso tudo com doçura quando folheio o mesmo  exemplar do livro que me acompanhou a Portugal e dentro dele acho minhas próprias fotos de Samardã que por não estarem digitalizadas não posso compartilhar com vocês. Samardã é no fim do mundo. Samardã é o mundo Saramago. Samardã parou no tempo . E como Saramago vai ficar no tempo deixo a ele a incumbência de definir muito melhor o que é Samardã. O que vai a seguir está na página 26 desse lindo livro que tenho em mãos. Fala Saramago :

" A poucos quilometros de Vila Real está Vilarinho de Samardã, e logo a seguir a Samardã. Hão-de perdoar-se ao viajante  essas fraquezas : vir de tão longe, ter mesmo à mão  de ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual com sua beleza , uma serra lendária , e correr, em alvoroço , a duas pobres aldeias, só porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco. Uns vão a Meca,outros a Jerusalém , muitos a Fátima, o viajante vai a Samardã ".

Eu sempre me considerei um viajante . Mas me sinto na plenitude da designação quando constato : eu sou mesmo um viajante pois  como o Saramago fui a Samardã.  

Comentários

Marly Ramos disse…
Ahhhdorei. De novo. Muito bom! Um bj.
Também quero ver Samardã.
Amèlie disse…
Ontem eu retomei "A Viagem do Elefante". Recomendo.

Bjs
Su disse…
Oieee!!
AMO o Saramago e vir aqui tbm!!
Bjosss!!
António disse…
Caríssimo, apreciei o texto, muitos parabéns. Mas Samardã não fica no Alentejo e sim em Trás-os-Montes, no Norte de Portugal, na encosta oriental do Alvão, entre o Parque Natural e o Rio Corgo. Boas viagens, boas escritas e saudações cordiais ;_)))

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