além do grito de Roberto Piva



Não que eu tenha me omitido de comentar a morte do poeta Roberto Piva. Não que eu tenha esquecido ou relevado ou atribuido pouca importância. Apenas não havia assimilado. Em meio a tantas mortes reais e tantas outras simbólicas que sepultam os tempos de utopia eu apenas me senti sem força, sem vontade de escrever sobre mais uma ida sem volta que deixa a paisagem tão árida, tão sem graça, tão morbidamente pouco criativa nessa sanha louca de anéis de noivado, shoppings centers, carros de luxo, celebridades baratas e rampeiras, culto à escrotidão humana. Há aqueles que , moderninhos, acham que manifestações como as minhas são surtos injustificados de nostalgia e melancolia. Pois que seja aos olhos deles. São os olhos deles que não enxergam as coisas e transformam a paisagem nessa aridez de condominios fechados e portarias de luxo. Muitos de nós não somos bem vindos nesse mundo de grifes mundanas, perfumes caros e emoções bregas e baratas. E os nossos combatentes pouco a pouco vão partindo em escalas locais, regionais, meridionais, planetárias. Geraldinho Anhaia Melo, o querido arquiteto e amigo Percival Brosig, o jornalista Claudio Faviere, Dennis Hopper e agora Roberto Piva. No Facebook querido leitor interessado em poesia me pergunta sobre a morte de Piva e minha relação com ele. Sempre amei a poesia de Piva e seu jeito desbragadamente poético de viver a sua poesia. Mas qualquer coisa que eu diga agora não vai acrescentar nada ao choromelô que já se fez em torno dele. O que guardo é a lembrança dele numa noite remota no Ponto Chic do largo Padre Péricles a me presentear e ao jornalista Mauricio Stycer com exemplares comprados em sebo de "O Direito a Preguiça" de Paul Lafargue em troca da janta que deveríamos pagar para ele. E aquilo não era um favor nosso para com ele . Muito ao contrário. Nós como meros jornalistas devíamos nos sentir honrados em alimentar uma artista como ele. Disse isso entre cínico e alegre. A cara do Piva.
Outra lembrança que guardo dele, essa mais recente, é sentado no sofá laranja aqui de casa, logo abaixo de um cartaz  da mesma cor que anuncia um show do Doors a me conceder uma entrevista para o programa "Mundo da Literatura". As mãos já trêmulas, o olhar por vezes vago, mas sempre a mesma visão dionisiaca e incendíária sobre a vida.  Tomamos café, rimos, ele elogiou o caminho campestre até chegar a minha casa e subindo as escadas de saída rumo a van da equipe me lançou um olhar que interpretei como terno e de gratidão. Disse que gostava do jeito que eu divulgava a poesia. É a última lembrança que tenho dele. Agora como já nada tenho a dizer e qualquer manifestação de  tristeza seria uma redundância cometo o desatino de ao invés de divulgar a poesia dele. como ele apreciava que eu fizesse, e  cometer uma poesia tentando imitar o estilo dele. Pode soar patético Piva. Mas juro que foi sincero. Tome lá meu velho :

ALÉM DO GRITO DE ROBERTO PIVA


Enquanto os anjos hebreus
Convalescem no Bom Retiro
Uma carruagem de efebos
transporta seu corpo vivo
banhado em vinho
de Dionísios passados


A orgia que gala o silêncio
Rompe as frestas do Largo do Paissandu
Enquanto aeronaves criticas pousam no Minhocão
Desembarcando ETs de falos eretos
Que emprenharão as domésticas de São Paulo
E os bondes azuis voltarão a circular
Com seus lampiões famintos de morcegos
A voracidade da luz a perseguir segredos...


A cidade come da tua poção
E se esvai em crimes, sêmen e porrada
Os dentes bambos se amontoam nas calçadas
E as putas banguelas lançam olhares
Aos astronautas

Tu comes piazzas, poemas com brócolis
Garotos erráticos
Tu vai além de ti e escorrega em direção ao infinito
Indo muito , muito além de seu próprio grito...


***
Ricardo Soares/ 6 de julho de 2010 23 e 40

Comentários

Ricardo, eu aqui senti o grito de Piva, libertado no seu poema.
E era forte, e era antigo. E era belo.

Evoé, poeta!!

Beijo e abraço.
Manolo disse…
conmovedora honestidade a sua Ricardo...digno habitante da poesia....tantas vozes em sua vida.... e uma voz singular em seus textos.abraços

Postagens mais visitadas