CHOVE EM BRASÍLIA

   
       Chove em Brasília e podem me chamar de saudosista porque  tenho saudades dos tempos das crônicas de Paulo Mendes Campos, Carlinhos de Oliveira, Fernando Sabino e Rubem Braga que, entre outras antiguidades, escreviam sobre a chegada da primavera, os amores difíceis ,as rugas precoces , a poesia destemperada, pessoas andando pela praia ou crianças escondidas a comemorar  pequenas alegrias em bares de subúrbio.
      Chove em Brasília e respiro fundo buscando dar a vida a mesma cor que anda aqui brotando entre o cimento. Brasília de cimento rachado, de falso sossego aparente que começa a ser lentamente estrangulada pela periferia que avança aprisionada em seus próprios medos e desejos de consumo. Chove em Brasília e não vejo poesia, não vejo alento, vejo um sol que alterna calor e mormaço e essa persistente sensação de fracasso que me acomete e atropela em rima essa tosca prosa.
    Chove em Brasília e eu vejo o lago, chove em Brasília e eu vejo a ponte e o Memorial JK e não me acho entre os turistas sorridentes ali do lado do Palácio da Alvorada. Tenho sempre a sensação de que cheguei aqui atrasado e que os usurpadores já palmilharam cada naco de terra disponível e que aqui permanece sendo a Disneylândia da corrupção, com montanhas russas de concorrências fraudadas e licitações fajutas que se alternam a túneis fantasmas cheios de corruptos fedorentos nos seus perfumes caros.
    Chove em Brasília e converso de má vontade com a sindicalista peluda, rancorosa e chata que me aponta dos descaminhos de Ceilândia e de todo o entorno enquanto as senhoras de carros importados queimam nossos impostos nas joalherias elegantes. Chove em Brasília e a primavera nativa traz gente que sorri , um passado que aqui não tive com quem não sabe se me quer e além do mais chegam os sons da noite embrulhados para presente num turbilhão de cigarras que explodem sob ipês de todos matizes.
    Enxergo na Esplanada dos Ministérios cenas do passado que aqui não vi in loco mas que estão registradas na minha memória. Vejo alguns deputados ladravazes rindo às escancaras diante de uma mesa farta e me entedio com os tediosos ministros do Supremo, supremas vergonhas da nação, em meio aos seus empolados discursos recheados de pronomes de tratamento. Eu os enxergo mas os queria longe nas escaldantes areias do deserto do Jalapão.
    Chove em Brasília e todos estão imersos em destemperadas discussões politicas que não aliviam nossas tensões e jogam o mau senso no centro da lona, todos voltando pra discussões medievais em cima de temas de fórum pessoal. Chove em Brasília e eu me desalinho diante do fluxo dos planetas, chove e eu me encharco de um pessimismo pastoso que cola na minha pele que se bronzeia sem protetor solar.
    Ando sem alma de paulista, sem ginga de carioca, sem ladinice mineira no meio desses edifícios e praças tentando entender porque não quis desvendar essa cidade mais cedo. Agora, tarde demais ela nem me decifra nem me devora. Simplesmente me ignora em meio ao riachão de carros do Eixão que nos levam para fora dos planos do piloto. Aliás quem segura o manche ? Manche é de navio ou espero o próximo assobio ?

***
Ricardo Soares
18/10/2010

Comentários

Helô Müller disse…
Que maravilha de texto, Ricardo!
Vc aproveitou a chuva, tão esperada, e lavou a alma...
Muita verdade em suas palavras, e dita com muita sensibilidade, parabéns!
Tenho um caso afetivo com a cidade, afinal morei lá por 10 anos, e como a minha prole ainda continua, de tempos em tempos, apareço pra "lamber as crias"! rs
Independente da corja política lá instalada, vale a pena conhecer obra tão grandiosa! O atrevimento arquitetônico e a funcionalidade da cidade, são totalmente fora dos nossos padrões, e só por isso já vale uma visita! ( assim penso eu! rs ) Só de pensar que aquele monstruoso lago é artificial... chega a assustar!
Vc escreve divinamente, suas idéias fluem suavemente... Muito bom ler vc, Ricardo!
Bj meu
Helô
ANA LÚCIA disse…
Gostei do texto. Pena que esta cidade com uma arquitetura tão expressiva abrigue a banda podre da política. Como dizem, nem tudo é perfeito...
Abçs,
Ana
Rosana Tonetti disse…
Sim, Brasília é tudo isso e talvez um pouco mais... Contudo, há algo de cativante nesta cidade que, na maioria das vezes, me leva ao tédio. Não consigo entender a razão, mas a verdade é que meus pés aqui fincaram e sinto uma enorma dificuldade em me soltar de suas enormes asas e simplesmente voar. Minha epígrafe será: não entendi nada, mas fiz o melhor que pude.
Ricardo Soares disse…
Rosana Tonetti, darling...sensacional sua epígrafe...adorei tudo,o comentário todo...bjss

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