invasão de terras infantis

                A sombra do lençol vem da janela pois o sol incide num naco da cortina, faz o reflexo. Desenha na alvura um animal em tocaia que foge do seu passado meramente predador. Insisto em ser caçador e não caçado e tento com olhos de míope enxergar além do horizonte pois após o mormaço sempre haverá chuva, mesmo que demore, sobre o Planalto Central. O que busco na verdade talvez nunca ache pois as  moedas cairam nos desvãos da memória e o passado que cobro dos outros também foi feio pra mim. Tateio a pele fina do presente, tão frágil, tão sujeita às intempéries, tão esgarçada de esperanças. Mas quando anoitece faço correr solta aquela esperança embutida, arranco a casca da ferida que me incomoda e deito no chão a observar nuvens da infância. Se meus sonhos se embutiram nos armários, tristes sonhos ordinários, aspiro o ar que me resta entre rinites e queimadas e sorrio quando enxergo uma porção de crianças que dançam ao redor de si mesmas no árido assentamento que visito. 
        São duas horas da tarde e elas comem restos em pratos de plástico. Querem olhar pra dentro da câmera que está diante delas. Como colonizador eu lhe capto os rostos, roubo um pouco dessas essências infantis e lhes lanço minha piedade. Pobre de mim que reclamo de nada pois a chuva imensa que vai desabar já já me deixa confortável dentro de um carro com ar condicionado enquanto elas ficam para trás em meio ao lamaçal e aos barracos com vazamentos entregues ao seu alagado e desalentado  destino severino. 

Comentários

Um novo livro?
São muito bons de ler.

Postagens mais visitadas