A MOÇA DO PORTÃO VERMELHO


  Debruçada no portão. Vermelho, baixo, defronte a um sobradinho modesto. Observando. Uma cena à moda antiga. Noiva de nossa mocidade, musa sem idade, baixa velocidade, estilhaço do tempo quando todo o bairro cheira a feijão refogado no alho e os pássaros arribam na direção de um sol de filme antigo. O futuro ainda não perturba nosso ouvido e os rádios de pilha anunciam contratações nos times grandes e desfalques nos pequenos. Sempre os pequenos...
   Debruçada no portão ela vê quem chega e quem parte para o turno noturno. Há apitos de fábricas que ainda ressoam e cartões de ponto ainda troam nesse subúrbio. Crianças jogam bola pelas calçadas, marcam com giz a rua pulando e brincando de céu e inferno. Um trovão se ouve , um relâmpago risca o poente e na rua de cima há promessa de casamento pra o mês que vem. Contrariada viúva pragueja contra os meliantes , o bêbado mais idoso sorri com uma peça de dominó na mão e dona Hemengarda varre as folhas do meio fio pela milésima vez no dia.
  Debruçada no portão ela não vê tsunamis a sepultar os sonhos dos mais velhos e pensa que quando chegar a semana santa todas essas ruas estarão cobertas por flores e pó de café para anunciar o caminho do Cristo Salvador. Bandeiras do divino abrirão alas e ramos de domingos vindouros saudarão a passagem dos santos dessas freguesias. Expeditos, Franciscos , Beneditos.Benzedeiras e simpatias. Alegorias religiosas nas doçuras de São Cosme e Damião.
   Debruçada no portão ela tem certeza de que a felicidade está ao alcance da mão e do seu decote arfante partem sinais de um futuro interessante. As promessas que serão resgatadas por um marido alvissareiro ? Todo um carnaval num único dia inteiro ? Férias na praia , bitucas no cinzeiro antes que as crianças nasçam e as coxas despenquem ?
   Debruçada no portão ela não toma café, não pensa no chá e nem nos bolinhos de chuva cuja receita a mãe ensinou. Vê de longe um carro que dobra a esquina e o pensamento , fluvial, dançante, vai para longe. Entra num rio, abre o portão vermelho e parte água adentro. A vida jorra.

***

Ricardo Soares

Comentários

Lu Carvalho disse…
Amei, vc descreveu um pedacinho de minha infância, doces lembranças.
Bjs
K. disse…
hei, tão bom isso.

me fez sorrir e ter vontade de chorar ao mesmo tempo (ô criatura mais bipolar!!!!???).

é que gostei da sua moça.

beijo grande.

Escreva, escreva, e escreva.:)
...eu continuo sempre na sua torcida. Você sabe.

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