O POETA JULIO SARAIVA E RÉQUIEM PARA O BAR DO LÉO

        
    Outro dia escrevendo aqui sobre o Marcelo Mirisola me toquei de que tenho muito poucos amigos escritores. E os meus poucos amigos escritores não são lidos,o que é uma pena. Não por serem meus amigos mas acho que eles são melhores do que a maioria dos incensados por aí por uma mídia superficial que presta mais atenção nos confetes que a turba literária joga pra cima do que em real qualidade. Ou seja, muito confete e pouca consistência.  Fora a ausência total de críticos literários nesse país. Mas essa é outra prosa. Aborrecida inclusive. Ela foi apenas uma introdução para eu falar de um desses meus amigos talentosos e pouco lidos.
o poeta e escritor Julio Saraiva
         Julio Saraiva é o nome dele. Aliás a melhor definição para ele seria poeta e não escritor. Ainda mais se formos levar em conta que um poeta é um escritor da alma. Nela fundeia os seus achados e perdidos, nela busca e fuça o que deixamos escapar entre os dedos. Não vou ficar aqui  desfilando as múltiplas qualidades do Julio como poeta ou como escritor nem lembrar que ele foi um dos lendários repórteres do extinto jornal "Notícias Populares". Sou amigo dele desde 1980 quando nos conhecemos na redação da Bloch Editores aqui em São Paulo , na luxuosa avenida Europa, onde trabalhávamos produzindo textos e reportagens para as inúmeras revistas do grupo como "Manchete" "Ele&Ela", "Pais e Filhos" e a "Boléia" uma revista dedicada a caminhoneiros onde eu trabalhava a maior parte do tempo.
    Minha amizade com Julio e mais Walterson Sardenberg Sobrinho - sem falar no querido Marco Antônio Souto Maior, Silvio di Nardo, Celso Arnaldo Araújo e muitos outros - se solidificou por  múltiplas cumplicidades sobretudo o gosto por poesia e literatura (e rock and roll no caso do Berg) e pela resistência a um jornalista  pusilânime e venal  que comandava aquela sucursal cujo nome não escrevo pra não poluir meu blog.
      Naquela ocasião saltava aos olhos o talento poético do Julio e sua maneira derramada de enxergar a vida. Julio era e sempre foi um romântico, um estilhaço dos anos 50 e 60 , um homem que poderia ter saído de um livro do maravilhoso Marcos Rey , escritor que eu , ele e o Berg sempre estimamos. Julio hoje lamenta a degeneração dos bares e ruas de São Paulo pois os vê decaídos e tristes , inexistentes até, solapados por essa cultura consumista e automobilística que soterra as lembranças.
     Mais não digo. Ontem eu ,Júlio , Berg, Souto Maior  e muitos outros amigos mais fomos surpreendidos pela triste notícia de que o lendário Bar do Léo,que tantas vezes frequentamos, ( rua Aurora,100)estava vendendo chopp falso e comida podre. Superlativamente desolador para um bar que já foi tido como o melhor chopp do Brasil. Abalado como eu com a notícia o Julio Saraiva escreveu uma crônica exemplar que reproduzo abaixo. Para mim ela diz tudo. E se vocês gostaram imaginem o que estão perdendo ao não conhecer a poesia do Julinho.


RÉQUIEM PARA O BAR DO LÉO



Assassinaram o Bar do Léo, ali na rua Aurora, que um dia foi o coração da Boca do Lixo de São Paulo. Reduto de malandros como Joaquim Pereira Costa, o Quinzinho; Hiroíto de Moraes Joanides; Mauro da Silva, o Xodó. Todos eram monarcas de um mesmo reino. De vez em quando se desentendiam. Mas, no final, acabava tudo certo.

Eles não frequentavam o Bar do Léo, que, apesar da localização, sempre foi mais família. Havia até algumas regras impostas aos frequentadores. Casal se amassar, era proibido. Batucada na mesa, nem pensar. Pedir o chope, tirado em serpentina de louça, sem colarinho, uma heresia. Se qualquer uma dessas regras fosse quebrada, o freguês era convidado a sair, sem pagar a conta, com a recomendação de não voltar nunca mais.

Mas e daí que assassinaram o Bar do Léo? Na Boca do Lixo, que virou cracolândia, assassinaram tantos outros lugares. O Tabu, por exemplo. Era um restaurante imundo, frequentado por jornalistas, policiais, rufiões, prostitutas e de vez em quando até gente de bem. 

Foi nessa mesma rua Aurora que Paulo Vanzolini compôs sua canção mais famosa, não a melhor, segundo o próprio, Ronda. O cenário é a avenida São João. Mas Vanzolini me contou que Ronda nasceu na rua Aurora, quando ele tinha 18 anos, servia o Exército e fazia patrulhamento na zona do baixo meretrício. Isto foi no início da década de 1950. E a primeira gravação de Ronda coube a Inezita Barroso. Ronda, hoje gravada até em japonês, foi apenas o lado B do 78 rotações de Inesita, onde pontificava a Marvada Pinga.

Na São João com a Ipiranga, também assassinaram o Bar do Jeca, frequentado por Mário de Andrade. E depois, bem depois, por dois baianos, então ilustres desconhecidos, que foram morar ali perto, na rua São Luís - Caetano Veloso e Gilberto Gil. O famoso cruzamento da São João com a Ipiranga inspiraria, décadas depois, Caetano Veloso a compor Sampa, um meio plágio de Ronda. Caetano disse ser uma homenagem, mas Vanzolini nunca engoliu.

O Paribar, perto da 7 de Abril, onde o escritor e crítico Sérgio Milliet, recebia os amigos, como se fosse uma espécie de escritório, também dançou. Por ali, também iam bebericar outros famosos, como o romancista e contista Marcos Rey, que se inspirou no estabecimento, que acolhia muitos publicitários, para escrever um dos seus mais belos contos, O Bar dos Cento e Tantos Dias.

Na 7 de Abril, reduto dos Diários Associados, tinha o Costa do Sol, outro finado. Para a minha sorte e de tantos outros colegas dos Diários, que esqueceram por lá seus penduras. Descanse em paz, velho Costa!

Acabou o Parreirinha, na General Jardim, ponto de Adoniran Barbosa, que tinha mesa cativa e almoçava, de graça, todos os dias. Na Ipiranga com a Consolação, teve fim o Redondo, quase em frente ao Teatro de Arena, frequentado por Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos - sempre fiel, embora não fosse de beber- e o pesquisador musical José Ramos Tinhorão.

Não vou falar no Riviera, na Consolação com a Paulista, porque nas vezes em que fui lá, só encontrei gente chata, a começar pelo dono. Então, volto ao Bar do Léo. E não vou dizer que lamento o seu fechamento, não. São Paulo é isso mesmo. Uma bosta de cidade, que adora assassinar sua história. De que adianta esbravejar?! Fecham o Léo, abrem um McDonald's. A gente passa e a vida continua.

Bem feito. No fundo, no fundo, eu acho bem feito. Bem feito pra São Paulo. Boemia acabou faz tempo. O que existe hoje é balada. E balada é aquele negócio horroroso, onde um bando de idiotas passa horas nas mesas, fazendo batucada, bebendo cerveja quente e não comendo ninguém.

Mais uma vez, bem feito pra São Paulo. Eu mesmo quase não saio mais de casa. Não vejo graça na noite. Não vejo graça em ninguém da noite. Sou coisa do passado. Minha barba está branca. E eu vou ficando por aqui. Mas bem que eu gostaria de descer agora, ir até ao Léo e tomar o último chope. Como se fosse um sacramento. Uma extrema-unção pra minha boemia agonizante. Tchau, Léo. Agradecido pelos porres. Pelo péssimo/excelente atendimento do Luís, o garçom mais malcriado de São Paulo. E por isso mesmo, o mais querido. Tchau, cacete! Chega!
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júlio

Comentários

Adonis k disse…
E por falar em bar, o Bar Sem Nome, da Dr. Vila Nova, também extinto, tocado anos a fio pelo antipático portuga Agostinho , bem próximo ao Bar do Zé, o Bar e Lanches Faculdade, do Zé, outro reduto da boêmia na esquina da Dr. Vila Nova com a Maria Antonia. Muitos porres, muitos porres.

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