Diário do Anonimato do Mundo - um 365 que virou 375

    
foto : Patrícia Gonçalves

Durante um tiquinho mais que um ano ( era para ser 365 mas acabou sendo 375 dias) fiz em parceria com a revista Pessoa um passeio telegráfico por muitos cantos do mundo. Clique aqui.. Muitos visitados pessoalmente , outros não.  O projeto ainda pode virar um livro ( pelo menos digital já que uma versão papel de 365 páginas fica carésima) e me deu muita alegria ter participado. Reparto abaixo algumas das últimas histórias com os persistentes leitores desse meu despretensioso blog.

Confira as últimas histórias de 365 – Diário do Anonimato do mundo. Durante um ano o escritor e jornalista Ricardo Soares passou por vários cantos do mundo com sua prosa acutilante e trouxe para a Pessoa uma história nova por dia.
Independentemente de sua geografia, os personagens de Ricardo somos todos nós, míseros e grandiosos. A viagem termina, mas as publicações reunidas todos os meses nesse período ficarão disponíveis para velhos e novos leitores. Que as paredes dessa casa feita de palavras nunca se calem.

1 de agosto. Gdansk, Polônia
Walter faz um sentimental turismo sindical em busca de incertas raízes do movimento operário europeu. Mas não encontra nada  além de ferrugem, ferros retorcidos e velhos navios carcomidos.

2 de agosto. Koper, Eslovênia
Uma pequena praia de seixos, à beira do Adriático, faz o fanático ser idealista que um dia fui se transformar numa sereia loira, deusa dos transformistas.

3 de agosto. Plovdiv, Bulgária
Maior rio do sul da Bulgária, o Maritsa. Dele levo lembranças tão remotas e ocas que não sei de onde vem na verdade esse meu país onde os trácios traçavam rotas que um dia foram esquecidas.

4 de agosto. Apoera, Suriname
Cinco holandesas lindas se amontoam na rede azul olhando uma paisagem que jamais enxergarão em Amsterdam. São tão belas e intocáveis que os nativos sequer as cobiçam com medo de que sejam apenas miragens provocadas pelo calor.

5 de agosto. Dédougou, Burkina Faso
Um dia, um tanto febril, acabei por contemplar um estranho festival de máscaras por aqui. Tanto as temi que não sai do feitiço e me encontro paralisado diante de um destino endiabrado

6 de agosto. Hiroshima, Japão
Hoje é mais um dia em que se lembra a bomba atômica. Tem idiota que diz que é mais um dia em que “se comemora” o dia em que a bomba caiu aqui na cidade, fervendo as águas do rio Ota e calcinando em tantas mentes a prova indelével  de que o homem é o animal mais cruel da galáxia na medida em que ainda encontra argumentos para defender tantos mortos em nome da guerra ou, pior, em nome da paz. Eu, às portas da minha velhice e pouco espiritualizado, tenho no corpo e na mente chagas daquele dia fatídico. Eu não tinha nascido mas nasci com as cicatrizes e não perdoo de forma alguma nenhum dos envolvidos naquilo tudo.

7 de agosto. South Molton, Inglaterra
Um gato, uma pantera extemporânea, um monstro negro e visguento… Afinal o que vem devorando as nossas ovelhas quase todas as noites sem deixar rastros? Eu não encontro explicações apesar de que o excesso de roupas ensanguentadas penduras nos meus cabides dá pistas de que o assassino possa ser alguém que eu conheço.

8 de agosto,  Kirtland, Albuquerque, Novo México
Não dou, nunca dei a menor importância a esses otários aeronautas que desde sempre andam ao redor da base aérea que tem por aqui. Eu não gosto do que eles defendem e não gosto do jeito do meu país que quer mandar em todos os outros. Dizem que sou deficiente mental e até acredito quando eu babo na camiseta. Mas não me venham falar bem do pessoal da base aérea porque senão ao invés de babar eu vou cuspir.

9 de agosto. Cabo Verde, África
Tudo aqui é litoral, é mar. Também calor, boa música, histórias de velhos marinheiros que falam de uma nuvem de forma curiosa que por aqui apareceu nos idos  de 1870 fazendo gente muito forte tremer de medo. Meu bisavô não soube dessa história porque nessa hora  e dia estaria dormindo bêbado sobre uma porção de sargaços.

10 de agosto. Milho Verde, Minas Gerais
Óbvio aqui pensar em curau, pamonha, delícias de milho. Sucede que poucas donas daqui sabem mesmo tratar um bom sabugo. Aí eu as “verdugo”.

11 de agosto. Alagoa Nova, Paraíba
Sertão paraibano, agreste paraibano, brejo paraibano. Canso de tanta gente ter idéia pré-definida do meu pedaço que é um naco caro da minha vida e dos meus antepassados. Não quero que enxerguem meu canto como uma microrregião geográfica com suas subdivisões oficiais. Quero que a vejam como ela é. Um pedaço de rapadura melada que nunca desgrudou do meu pé.

12 de agosto. Bagre, Pará
Aqui, se você não sabe, fica no Marajó. O Marajó, se você não sabe, tem muita história. Uma história dentro da história de Bagre é que daqui saiu um mascate bonito que tanto bateu perna pelo mundo que acabou por se assentar no Oriente. Ali virou um sultão, transformou-se em peixe do mar e de bagre nem quer ouvir falar.

13 de agosto. Cabixi, Rondônia
Essa cidade tão longe que se debruça tristemente sobre o rio do mesmo nome que era a denominação de uma tribo que está há muito extinta. Tudo aqui não é tinta fresca. É um calor que vem do passado e não tem rumo. Aqui meu juízo perde o prumo.

14 de agosto. Arabutã, Santa Catarina
Grandes novidades por esses dias visto que duas ruas tiveram os trabalhos de pavimentação concluídos. São as ruas Leopoldo Jungles e José Buhl que agora constam com orgulho nos mapas do anonimato do mundo. Devidamente asfaltadas.

15 de agosto. Ipueira, Rio Grande do Norte
Quando volto pra cá, muito de vez em quando, me incomodo com o sotaque que, confesso, acho feio. Tem gente que duvida do meu anel de doutor, conquistado às duras penas. Mas o que não consigo, sob pena alguma, é perder esse resto de sotaque que me machuca tanto quanto ver meu pai entrevado sacudindo a esmo na puída cadeira de balanço.

16 de agosto. Bom Lugar, Maranhão.
Apesar de mesmo aqui, como esse belo nome de cidade, ter uns caboclos que representam os interesses do bigodudo dono do nosso Estado não impede minha alegria completa quando vejo meus filhos crescendo sadios inverso aos vadios que mamaram sempre nas tetas do bigodudo que já nem sei se vive ou está morto pois para mim é um museu de grandes decepções eternamente.  A pobreza do meu entorno contrasta com a rica miséria que ele sempre representou. Viva o Maranhão sem dono.

17 de agosto. Limoeiro de Anadia, Alagoas
Quem foi Anadia, dona do limoeiro? Sei não. Sei só do solzão que castiga a meninada dentro da arrebentada sala de aula. A gente com baita calor tentando ensinar e eles todos só querendo se banhar.

18 de agosto. Macambira, Sergipe
Macambira é planta que aqui não mais viceja. Sou botânico desastrado e vivo zanzando aqui procurando por ela. Não acho. Mas sequer acho meu juízo que perdi na ponta de um guizo.

19 de agosto. Miguel Leão, Piauí
Oficialmente tem muito pouca gente nessa cidade. Tem tão pouca gente que nem sei mais quem é vivo e quem é morto visto que o pouco vento que aqui bate não anda bem disposto.

20 de agosto. Rebouças, Paraná
Meu trabalho me trouxe para uma cidade com o mesmo nome da avenida paulistana onde perdi atropelada a minha amada. Por mais que essa cidade simpaticamente me acolha , mesmo que de maneira provisória, eu não consigo gostar dela porque associo o nome ao atropelamento. De forma que não poderia acertar o título de cidadão honorário pois sou um mal agradecido salafrário.

21 de agosto. Sumaré, São Paulo
A cidade, antes pacata, virou insensata e tirou o falso verniz de cordata que caía sobre ela. Foi para as ruas protestar contra a violência e as altas tarifas dos ônibus. Surpreendeu-se Heitor, o empreendedor. Só que isso foi em junho passado o que ele só percebeu quando se deu conta que lia um jornal antigo abandonado no revisteiro dessa clínica de geriatria onde ele se consulta escondido, esse eterno Peter Pan.

22 de agosto. Patos de Minas, Minas Gerais
Os ratos de Minas invadiram Patos num congresso informal de vereadores canalhas de todo Estado. Quis muito ter gigantescas ratoeiras para aplacar essas toupeiras.

23 de agosto. Teresópolis, Rio de Janeiro
A cidade ainda jaz detonada mas o ilustre advogado sênior aqui radicado segue a legislar  a favor da negligência das restaurações. E não mede esforços para ir com dinheiro público até Brasília para farrear na posse de um novo ministro do Supremo.

24 de agosto. Pomerode, Santa Catarina
Entra na farmácia buscando ascendência nos olhos claros do farmacêutico. Quer se declarar sua filha mas ele não a reconhece. Nem pelos olhos nem pelos modos que são sutis.

25 de agosto. Anhanguera, Goiás
Nessa cidade de nome de um bandeirante ordinário o Elismar não sabe mais o que fazer por odiar música sertaneja nessa terra onde  todo mundo quer fazer dupla com a mediocridade.

26 de agosto, Barranquila, Colômbia
Tantas meninas sadias a querer imitar Shakira. Estragam assim muito além dos dentes em busca do estrelato inalcançável.

27 de agosto. Sarajevo, Bósnia
Vós que aqui estivestes… É sabido agora que essa terra bela é sedenta de sangue  desde que tiro certeiro deflagrou a primeira Guerra Mundial. Talvez a sede de sangue tenha surgido antes mas, por sorte, nenhuma sede conseguiu aplacar a beleza exuberante que aqui reside. A vida aqui é passagem que passa inclusive sobre os mortos.

28 de agosto. Mahis, Jordânia
Os pomares daqui merecem altares de agradecimento a quantos deuses foram precisos. É uma visão única do preceito de que em se plantando tudo dá.

29 de agostoAl- Hofuf- Arábia Saudita

Temperatura média de 31 graus… A areia de sempre é o de menos. O que é demais é crer que aqui tem alguma glamourização ao estilo Lawrence da Arábia. Aqui a levada é mais bruta.

30 de agosto. Faridabad, Índia

Tanta indústria inumana por aqui faz perder o gosto por qualquer busca turística numa terra que parece esquecer as tradições em busca das monções de grana.

31 de agostoMadingou, Congo

Tenho trazido tanta carga pesada por estradas pesadas desse país que não é meu que estou começando a esquecer das feitiçarias. Hoje mesmo não lembrei de esfregar meu traseiro num portal, como um mandril,  para fazer andar pra trás a vida de um sujeito a quem desprezo. Ando muito cansado, comendo a poeira do meu passado.

1 de setembro. Cagliari, Itália
Sabe quando você acorda com ressaca e a boca ainda tem cheiro de vinho azedo? Assim despertei  aqui hoje nesse lugar antes habitado por tribos sardas sem ter a menor lembrança de como aqui cheguei. Só lembro de ter saído de Roma com a mente em Veneza. Nada sei daqui a não ser o nome do time que é o mesmo da cidade. Chuto o senso para o alto e corro para o abraço da torcida.

2 de setembro. Arendal, Noruega
Tempo ameno, paisagem tão bela que parece uma casa de bonecas. Barcos margeiam um deque, eu bebo uma cerveja nórdica e não sinto falta do calor dos trópicos. Tenho vergonha de me chamar de civilizado mas não tenho a menor saudade do meu passado de imigrante.

3 de setembro. Bogense, Dinamarca
Estou enxergando mal ou existe uma fileira de trailers ao lado da igreja de telhado marrom? Dentro desses trailers estão alienígenas, pessoas confusas, drogados ou simplesmente uma legião daqueles a quem chamados de deserdados pelo destino? Sucede que num país com essa fama de resolvido quem quer que ali esteja parece um desatino.

4 de setembro. Gomel, Bielorrússia
Quem foi o viajante errante que por aqui passou dentro de um trem e mal descreveu com precisão tudo o que viu? Quero sinceramente dar umas pancadas nele pois essa carência descritiva me fez não achar nenhuma atração mais furtiva nesse canto esquecido do mundo.

5 de setembro. Hadibu, Iémen
Jabal al-Jahir. Pico tão antigo que a tudo rodeia. Isso faz com que a gente esqueça que somos um povo que toma parte de uma cidade que fica num arquipélago que poucos no mundo conhecem. A história dos meus pais é a história dos meus avós que é a história dos nossos antepassados. Vivo mascando minha própria saliva para tentar viver com isso. Mas não resisto e cuspo.

6 de setembro. Baikonur, Cazaquistão
Daqui dessa cidade lançaram tantos foguetes errantes na época da guerra fria que eu chego a suspeitar que minha irmã retardada seja apenas um produto dos destroços.

7 de setembro. Brasiléia, Acre
Essa cidade que tem Brasil no nome e de maneira esculachada me faz sentir o quanto sou desse sul do Acre, território de bravos. O clima equatorial me maltrata mas já que voltei vou correr pra o desfile do dia da pátria. Me sinto mais brasileiro do que nunca.

8 de setemrbo. Osh, Quirguistão
Essa  cidade, dizem, é um dos mais antigos assentamentos na Ásia Central. Era conhecido no século VIII como um centro de produção de seda ao longo da rota de mesmo nome. Depois foi palco de brigas étnicas. Cheguei aqui como historiador mas me cimentei no local como admirador. Ninguém entende porque mas eu vou ficando.

9 de setembro. Luang Prabang, Laos
Calcei minhas sandálias de pescador e aqui me resignei. Estou convencido que entre tanta beleza eu haverei de encontrar um portal dimensional para algo melhor ainda. Doei meu dinheiro aos pobres e implodi a Alemanha que havia dentro de mim. Agora só contemplo. Contra o lerdo vento.

10 de setembro. Chongqing, China
365 dias depois dele ter escrito, todos os dias, histórias nas paredes dessa casa agora elas se calam. É um enigma se as paredes assim vão ficar ou se alguém passará cal sobre tudo . Isso não importa pois ele sabe que as palavras escaparão pelas janelas.

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