O VIZINHO

Eu quase nunca o notava. Ou se o notava pouco lhe dava atenção, imerso no meu cotidiano pseudo-importante enquanto ele parecia desocupado ainda mais depois que se aposentou e eu o via vagando pela portaria do prédio, a rua onde morávamos e a padaria da esquina onde se debruçava horas no balcão a observar o movimento ou a bebericar com os amigos mandriões.

Esse meu vizinho aos poucos passou a arrastar chinelos e durante 20 anos que moramos no mesmo andar não tive mais  do que meia dúzia de curtas prosas com ele.Nossas conversas eram poucas, algumas quase monossilábicas , visto que era patente que eu não tinha muita afinidade com seu ideário claramente conservador e seus assuntos generalistas. Nunca fui antipático com ele mas também nunca lhe dei trela. Mas um lado meu se compadecia fortemente dele. Meu vizinho era um homem triste de olhos miúdos e caídos, rosto comprido e calva acentuada. Lembravda uma figura de Modigliani , vestia bermudas desengonçadas e tinha sempre um cigarro entre os dedos. Seu "bom dia" com voz de fumante ainda agora me chega aos ouvidos.

Anos a fio de certa forma eu o vi afundar na birita e no desalento, sempre zanzando entre o desemprego e a definitiva aposentadoria. Inclusive não me parecia tão velho quando se aposentou. De certa forma os filhos pareciam desprezá-lo, olhavam para aquele pai surrado quase que como o culpando por ser um fracassado. Muitas vezes, indiscreto  sem querer, pude ouvir discussões  e choros na cozinha dele quando eu entrava ou saía do elevador e talvez os meus vizinhos nunca souberam  que eu, sem querer, os escutava nas suas aflições. Eu me apiedava do meu vizinho. Mas nunca quis saber mais sobre ele.

Andei pelo mundo, entrei e sai de rádios, televisões e jornais , me julguei importante e o meu vizinho  sempre ali a sucumbir na sua tristeza diante da minha indiferença simpática mesmo quando ele me revelava, tímido, que tinha me assistido na tv.  Não sei lhes explicar porque me lembrei desse vizinho em uma sala de espera do aeroporto de Brasília. Será que porque  estava chegando o esqueleto de Jango, agora redimido depois de esquecido ?

Será que porque refleti sobre pessoas que passam plácidas por nós sem a menor vontade de protagonismos ? Não sei de fato. Sei apenas que me deu uma melancolia pré- feriado pois esse meu ex-vizinho já morreu faz algum tempo sem que jamais tivéssemos tomado um café juntos  nem na cozinha dele  nem na minha assim tão próximas. E também não nos embebedamos juntos na padaria da esquina em busca de tempos mais felizes. Assim é a vida. Sem moral da história...

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO PORTAL "DOM TOTAL"... em   http://www.domtotal.com/noticias/693680

* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor , roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor , entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

Comentários

O que dizer ? Que li e me comoveu ? É pouco ante a beleza do texto.É pouco, ante a tristeza da existência. Mas, o que dizer ?
Um grande abraço para voce
Ricardo Soares disse…
o que dizer ? que recebi e retribuo o abraço... a vida segue...grato querida Urtigão

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