PARIS, SEMPRE A PRIMEIRA VEZ


   Um fio de perfume basco chamado Euskadi  repousa num estreito pedaço de cartolina. É apenas uma de muitas lembranças que estão sobre a caótica mesa cheia de papeizinhos, bilhetes de metrô usados, notas fiscais de brasseries, boulangeries e cafés que formam o mosaico dos dias que passam agradáveis quando se flana por Paris.
   Estou num studio no oitavo andar de um prédio em Passy, não muito longe de onde viveu Balzac. A janela está aberta e dá para uma estreita e simpática varanda . Atrás desse prédio está a torre Eiffel mas não a vejo. Apenas voam sobre  minha cabeça as luzes que dela emanam.  São 11 e meia da noite e não a mais de 40 minutos anoiteceu em Paris nesse maio de 2014 , tantos maios depois  de tantas outras primaveras aqui vividas e sentidas sobretudo aquela revolucionária e um ícone do século 20. A primavera de 1968.
   Volto à cidade pela quarta vez na vida e voltar aqui é como reencarnar. A vida é mesmo muito curta para vir tão pouco a Paris. Mas estou de volta e regressar aqui é como reencarnar. Paris é sempre uma primeira vez. Mesmo que se tenha visto já umas 200 vezes a Torre Eiffel ou cruzado mais 200 as pontes que cruzam o Sena, Paris é sempre recomeçar . Esse sim um sonho feliz de cidade, um destino mítico e quase universal com o qual tantos sonham mas nem todos podem aqui estar ao vivo para conferir.
   Minha companheira não conhecia a cidade então alguns recantos eu vejo de novo com os olhos dela, como se fosse essa feita a última vez. Quase Besame Mucho , um bolero aliás que os músicos de rua aqui tocam sem parar. Afinal Paris, se mulher fosse e não uma cidade, seria aquele objeto de desejo que a gente sempre quer beijar muito.
    É tão bom ser um anônimo completo por aqui que lamento o destino das celebridades que por aqui não podem flanar incógnitas . Pois flanar parece ser nosso destino em Paris. Venha de onde a gente vier. Volte para onde a gente for voltar o bom é simplesmente flanar. Deixar que as cenas aqui vistas grudem nas paredes de nossas memórias e não desbotem com o passar dos anos.
    A caudalosa avalanche de lugares comuns que eu aqui despejo é porque Paris é antes de mais nada uma cidade de sensações e não de decisões. Ou, se você quiser, é uma cidade de constatações. Para começar você constata que a cidade é linda e insubstituível e pronto. E ponto. Não brigue com a beleza dela . Não brigue com o patrimônio universal de sua unanimidade e nem venha com aquela balela que a cidade é linda “apesar dos franceses”. Ela é linda, sim, também por causa dos franceses e dos parisienses que amam a sua cidade. Mesmo quando chove Paris é linda. Mesmo quando é frio Paris é bela.
    Tantos e tantos escritores mundo afora e épocas adentro escreveram sobre a cidade. Muito melhor do que eu .Com mais a dizer a respeito dela do que eu. Paris é uma cidade que respira literatura.Mesmo nessa época globalizada de tablets e smarthphones, instantâneas conexões sociais e fotográficas. O teu suspiro em Paris agora será ouvido em Bangkok ou Feira de Santana na velocidade da luz que não é a velocidade da cidade-luz.
    Mas apesar dessa velocidade toda do mundo Paris me desacelera. Quando aqui vejo a humanidade sorrindo, tomando sorvete e se comportando como  criança acho que nem tudo está perdido e nem eu que não me preocupo com a “busca do meu tempo perdido” para aqui lembrar mais uma saga literária concebida na cidade. No caso a saga de Proust com seu imortal olhar tristonho que os seus retratos revelam. Vejo enfim as mãos de Proust e Beauvoir, de Sartre, Camus, Voltaire,Hemingway, Garcia Márquez e Henry Miller a tentar nos descrever a eterna magia da cidade como tantos outros.
    Vejo a lua a minha esquerda na janela e a direita a companheira deitada na cama a dedilhar seu telefone passando para a família dela todas as emoções que a cidade lhe suscita. Pois então assim é Paris ! Um despertar dos sentidos, o hedonismo humanista que aflora e nos dá a  certeza  de que somos enfim humanos com capacidade de ver e gerar muitas alegrias e não robôs de shopping centers. Paris, senhor Hemingway, continua sendo uma festa . Apesar da Europa unificada e cheia de problemas dos dândis do mercado que defendem uma cultura que tenta soterrar o que aqui se preserva. Nesse doido mundo nosso eu diria que Paris resiste. Docemente resiste. Resistance avec elegance.
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

(PUBLICADO ORIGINALMENTE NO PORTAL DOM TOTAL) 

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