O RIO INTERIOR



Você tem uma cama para eu dormir? Estou cansado.

_ Tenho, mas é numa tapera suja, com colchão mofado, travesseiro duro, fronha fedorenta.

_ Eu preciso dormir…

_ Custa cinco dólares.

_ Eu dou dez por um lençol mais limpo.

_ Então é quinze…

Pois ao entrar na tapera, o calor a sufocar os sentidos, os mosquitos a aperrear o juízo, o mormaço a ensopar o corpo ele simplesmente dormiu a ouvir, ao longe, a correnteza. Ao amanhecer pelas frestas da tapera pode ver ao longe algo semelhante a uma procissão de barquinhos a carregar santinhos. A maioria deles de puro pau oco. Riu ao vislumbrar as bandeirolas e tentou acenar para os ribeirinhos sem se tocar que ninguém o via. Era preciso primeiro se levantar, lavar o rosto, fazer a barba, tomar um café ralo e comer um ovo cozido para se fazer visível nesta temporada. Assim foi feito, mas aparentemente nem assim o enxergaram.

Era preciso se fazer notar. Plantar um cacto grande num vaso rombudo, esticar camarões miúdos e salgados ao sol, subir na palmeira do açaí e trazer a fruta na mão espremendo-a depois com os dentes. Ou talvez fosse preciso pegar o maior peixe, deflorar a mais cobiçada virgem, perdoar o mais enfadonho vilão, bater na cara das evidências, mas o calor era imenso e o clima parecia tenso. Aos poucos tudo começou a cheirar cachaça e pássaros desconhecidos pousaram no telhado quente de zinco. Súbito reparou que não tinha mais seu relógio reluzente. Súbito reparou que a margem do rio se esvaiu. Súbito reparou que o enorme volume d'água diante de si, sedento de vapor, não era na verdade um acidente geográfico, mas o seu turbulento rio interior.


*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

Publicado originalmente no portal DOM TOTAL...Clique aqui.

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