UM VÃO NO REMENDO DO ESTUQUE


     Ah, sim , meu nome é Mirtes, faz calor no apartamento e me debruço na janela onde avisto , bem na minha frente, o Minhocão e seus carros que vão e que vem. Um relógio vermelho na parede marca vinte minutos de atraso de minha vida em relação à vida de Tião que da sua mal feita construção olha por um vão no remendo de estuque e enxerga o congestionamento na avenida Brasil, Rio de Janeiro.
    Tião não pagou a conta do celular de forma que não pode falar sobre os progressos da filha em Manguinhos com o primo Otomar que se equilibra numa tosca casinha num aclive da avenida Cristiano Machado em Belo Horizonte de onde vê todos os dias os carros dos turistas aflitos correrem para o aeroporto dos Confins sem nem darem um pulo ali em Lagoa Santa para prospectar milagres em cavernas há muito descobertas.
   Em Lagoa Santa o Érico tenta consertar um velho rádio de pilha , rouco e encardido, amarrado com elásticos. Não tem TV em casa e os jogos do Atlético dependem desse arranjo eletrodoméstico. Um dia ele quis ser jogador de futebol mas ninguém o aceitou. Por isso ceva no filho a esperança de que ele pode servir ao Galo contra o Cruzeiro num dia que sua casa tiver, copa, cozinha, banheiro.
    Em Vespasiano , não longe do Érico, mora o Rudimar , este sim com real chance de passar do juvenil do América para o Atlético e assim estrelar lindos espetáculos no Mineirão reformado. O sol nasceu pro Rudimar , ele tem certeza que vai emplacar e então dedicar seus primeiros gols para o pai, para a mãe , para um filha precocemente nascida e para uma paixão perdida que mora hoje em São Paulo bem na frente do Minhocão. O nome dela é Mirtes e vive a olhar o relógio vermelho desengonçado que a coloca sempre no atraso em relação a muitas vidas.

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