INDECIFRÁVEIS SONS DE REMOTOS BANQUETES


      É uma gravação antiga. Talvez de um remoto gravador de rolo. Ouvem-se vozes, muitas vozes em primeiro plano. Mais ao fundo tilintar de copos, garfos, facas, colheres,facas. Pode-se imaginar que tilintam também cristais e louças finas. Há risos contidos ao fundo. Outros mais rasgados. Uma espalhafatosa gargalhada dá idéia de que estamos diante do arroubo de uma aristocrata levemente embriagada de champanhe. 
   Por mais que sejamos especializados em arqueologia sonora fica difícil saber exatamente de que época é essa gravação. Foi logo depois da Primeira guerra mundial ? entre a Primeira e a Segunda ? Durante a Segunda ? logo depois da Segunda no alvorecer da Guerra Fria ? Em que pomposo salão europeu teria se dado o banquete ? Londres, Paris , Berlim, Genebra , Viena ? Ouvem-se notas tênues de jazz, expressões em inglês castiço, inglês made in Usa, alemão, francês, italiano e até um fugaz “hasta luego” pode ser ouvido.
    De alguma maneira parece ser possível sentir os aromas do recinto e os humores em volta das mesas. Tudo cheira bem. É um ambiente inegavelmente perfumado, fruto de uma época onde se penduravam as cartolas na chapelaria ? Se existem apreensões elas são diluídas ao sabor dos risos, das pequenas cortesias, dos olhares furtivos , do brindes sinceros e falsos que não podem adivinhar os humores políticos do amanhã. A temperatura ambiente é, digamos, amena e salubre. A corrente de ar discreta ameniza qualquer desconforto e dispensa a artificialidade dos ares condicionados. De mais a mais alguém já viu diplomatas resfriados ? na sua elegância forçadamente casual há um tom de certa superioridade, aquela que nunca coloca catarro nariz afora. Ninguém imagina que um dia um diplomata de smoking possa ser sido um menino “ranhento”.
   A dificuldade em precisar a data desses sons é que os torna mais fascinantes. Imprecisos e atemporais denotam que o tempo não muda certos hábitos e costumes e , de certa forma, comemos e vamos à mesa da mesma maneira há muito tempo. Quantos banquetes, jantares, ceias e cerimônias como essa já não aconteceram durante a história da humanidade? Em quantos deles os destinos dos humanos foram decididos ? Diante de que mesa, pastoreando que refeição,foi decidido o extermínio de judeus,ciganos e homossexuais ? Diante de qual digestivo , em meio a fumaça de quais charutos foi imaginada a política colonialista na África ? Que chá bebiam os ingleses quando foi decidido que não tirariam as mãos da Índia por livre e espontânea vontade ? diante de que prato foi decidido o butim ao redor das obras de Brasília e de Itaipu?
   Volta a rodar a gravação antiga. Quase sem chiados. Súbito alguém muito hábil dedilha um piano de cauda. Pode-se ouvir então a mão do silêncio que repousa sobre todos os comensais. Deus toca piano ou estaríamos apenas diante de um apólogo universal sem véu de alegoria ? Um preâmbulo poético para o castigo que um dia há de vir por conta de tantos banquetes equivocados que deixaram registros sonoros indecifráveis ?



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