MEU ENCONTRO COM JOSÉ SARNEY

    


    Republico aqui texto de segunda-feira, 3 de agosto , do portal DOM TOTAL. (Clique aqui) Forma "singela" de homenagear a figura "impoluta" de um grande sem noção da nação, o "luminar' José Sarney, talvez o único ser humano que em vida ergueu ( em espaço público) um museu em sua própria homenagem. Exemplo superlativo do que é dar demasiada importância a si mesmo. Esse "encontro" com Sarney inaugura um novo marcador desse modesto blog. Os "encontros imaginários"  (ou não)  com "personagens" vários. Em breve meu encontro com Eduardo Cunha...


MEU ENCONTRO COM JOSÉ SARNEY




       Estou esperando um amigo na saída da estação Fradique Coutinho do metrô paulistano. Na boca da rua de mesmo nome, sentado numa elevação de cimento perto da escada, que leva pra o embarque. De repente, sem mais, senta-se ao meu lado José Sarney. Ele mesmo. Trajando roupas comuns de amanuense que é um termo que ele, antiquado, deve gostar.
   Sarney está sem seguranças, sem a liturgia dos cargos, sem os costumeiros e repulsivos puxa sacos que lhe ordenham o ego. Súbito puxa assunto comigo me perguntando as horas. Vingativo eu dou a hora errada, minúscula represália diante do enorme mal que esse elemento fez a mim e ao país. Mas, piedoso, eu penso: é apenas um senhor de aspecto respeitável, cabelos tingidos, bigode grosso, querendo puxar prosa.
   Aí dou corda e o Sarney sai falando como um boneco de cera de si mesmo. Me pergunta primeiro se eu sei quem ele é. Relutante digo que sim sob risco de inflar mais ainda seu ego imenso e doente. Digo sim mas não acuso o golpe, não pergunto o que ele faz em São Paulo, na saída do metrô Fradique Coutinho. É ele que me conta que está ali a esperar o governador de São Paulo para juntos almoçaram num restaurante mexicano nas cercanias. Uma tentativa, provavelmente vã, do insosso Sarney colocar tempero e pimenta na vida do governador Chuchu.
  SE eu disser que Sarney é simpático é uma mentira. Mas se disser que é antipático também é mentira. Ele é, no mínimo, anódino, protocolar, um sujeito que mesmo despido de vestes caras nesse começo de tarde, se dá uma importância solene, se atribui um lugar ao sol juntos dos faraós. Se acha muito mais uma esfinge e uma pirâmide do que a múmia anacrônica que de fato é.
   Sarney diz que Chuchu vai chegar ao encontro sem o ritual do cargo também. Os dois combinaram de passar uma tarde juntos como mortais. Imagino que vá ser divertido, lá do jeito deles. Pergunto o que vão beber no almoço e Sarney me assombra dizendo que vai tomar um Dreher. Afinal diz o slogan do conhaque: " Deu duro tome um Dreher". Isso é a cara do Sarney. No entanto não consigo descobrir o que beberá Chuchu mas isso na verdade não me importa.
   Sarney olha inquieto o relógio e me pergunta se me interesso por literatura brasileira, tema que muito me apraz. Digo que gosto de Cony, dos contos de Rubem Fonseca, de coisas antigas do Dalton Trevisan, do Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Marcos Rey e até do pouco falado Antonio Olavo Pereira, autor de "Marcoré". Então ele me pergunta se li alguma coisa dele. Digo, sinceramente, que tentei  mas adormeci inexoravelmente após as duas primeira páginas. Ele deu um muxoxo, se disse um injustiçado mas afirmou cheio de orgulho que apesar do desprezo de muitos ele é membro da Academia Brasileira de Letras.
  Foi minha vez de dar um muxoxo enquanto ele se levantava, ajeitava a roupa cafona e acenava para o governador Chuchu que dava as caras do outro lado da rua. Nos despedimos sem aperto de mão e sem abraço que ele preferiu dar no governador, esse médico de péssimos diagnósticos que logo de cara sacou um exemplar de um livro de Sarney ansiando por um autógrafo. Nesse momento meu amigo Dagomir chegou e me cutucou no ombro direito. Perguntou se eu estava dormindo. Disse que não apesar de ter tido um pesadelo de olhos abertos.
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Foi cronista dos jornais "O Estado de S.Paulo", "Jornal da Tarde" e "Diário do Grande Abc" e da revista "Rolling Stone". Autor de sete livros entre os quais o romance "Cinevertigem".

Comentários

Thiago Alvez disse…
Meu caro Ricardo lendo essa sua crônica\conto, fico triste com essa dura realidade de saber que esse mal ainda perdurará com sua filha, mas o que me espantou foi a sua citação do livro "Marcoré", do Antonio Olavo Pereira que eu li esse ano e fiquei maravilhado com a escrita do autor e o tema, e triste também por saber que quase ninguém o lê hoje em dia, não existe crítica a respeito da sua obra, quase como se fosse até proibido de citar o seu nome.

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