NÃO ESTOU SATISFEITO


Não estou satisfeito. Se me empanzino não estou satisfeito. Se bebo até afogar antes de me embriagar quero me satisfazer. Mas não estou satisfeito. Não estou satisfeito com meu pensamento sem coração, não estou satisfeito com meu bordão, com meus segredos, com meus cadernos velhos, meus cães pelados, minhas covas abertas, meus buracos dentados.
Não estou satisfeito com meus projetos errados, com minhas colheres que entortaram, com as madeiras que apodreceram, com os conhaques ruins, os tomates falsos, os agrotóxicos, as estradas de mão dupla, a velocidade, a maldita força de vontade. Não estou satisfeito por estar em paz por completo, nem em estar em guerra por dentro, nem com o lixo no terreno baldio , nem com as páginas do livro manchadas de vinho. 
Não estou satisfeito com aquelas velhas cartas de amor amarradas com fitas vermelhas, com os anéis de noivado dos meus pais, com o transito que visita minha infância , com o salto da noiva que quebrou na subida da igreja do Carmo, com os meninos mortos na Candelária.
Não estou satisfeito com a política , com os dentes mal escovados, com a perda de referências nas cidades das demências. Não estou satisfeito com o risco da bala perdida, com aquela cascata de sangue que sai do boteco dos mortos e nem estou satisfeito com os milicianos, os policiais corruptos, os ladrõezinhos assassinos pouco mais que meninos. 
Não estou satisfeito porque sou dono e nem porque sou inquilino. Não estou satisfeito em ser vizinho nem em ser locatário. Não estou satisfeito por ser gestor nem mandarim e , ai de mim, não quero ser mandado mas também não quero mandar. Não estou satisfeito por correr muito menos por ir devagar.
Não estou satisfeito com minha azia, com a minha dor de cabeça, com a batida dessa música nova e nem com o som daquela música antiga. Não estou satisfeito com alaúdes nem craviolas nem com banjos nas cartolas. Não estou satisfeito com as ruas de Madri, com as ramblas de Barcelona e muito menos com as praças de Minas.
Não estou satisfeito com os poços sem fundos, com os lápis sem pontas,muito menos satisfeito fico ao ter que prestar contas. Não estou satisfeito em satisfazer muito menos em fazer acontecer. Satisfeito me satisfaço com aquilo que abre espaço e aí, passo à frente e outro atrás,me satisfaço quando caço. Satisfeito em ter a presa me ofereço em sobremesa e aí satisfeito fico em saber da minha doce insatisfação.

Comentários

Postagens mais visitadas