AMPARADO POR UM TERÇO

  
praia de Hermenegildo...extremo sul do Rio Grande do Sul. Foto : Ricardo Soares
  Replico aqui a crônica da última quinta feira no DOM TOTAL... (leia aqui). Porque não custa nada imaginar que ainda possamos fazer coisas grandes...

        AMPARADO POR UM TERÇO

    Era um naufrago , estava na praia, mas não se sabia um naufragado porque não lembrava de um naufrágio. Lembrava sim de um mar raivoso,um mar sem fim, um mar sacudido e um barco talvez a deriva com um tosco capitão de longo percurso conduzindo aflito a embarcação encardida no meio de ondas altíssimas e mexidas.
   Agora uma longa praia, uma longa faixa de areia, longos sargaços, alguns cães vadios a lhe lamber a areia seca no rosto e a sensação de estar embutido em outra vida que não a sua. Dizer que a praia era deserta seria pouco. Era uma praia deserta, erma, superlativamente iluminada por um sol de inverno que não esquentava as juntas frias do seu corpo.
   Diante disso tudo levantou quase ligeiro, sentiu tontura, pôs as mãos diante dos olhos porque a luz feria e olhou para o norte, para o sul, para onde mais desse. Longe, mas muito longe mesmo, pareceu enxergar um farol. Seria uma clássica miragem ou ele sinalizava uma direção a ser seguida? Não custava tentar chegar mais perto.
   A vida é breve e as dimensões e segredos da América Latina vive num mosaico de histórias, fatos, mitos, homens e mulheres que se engalfinham desde tempos imemoriais de disputas entre portugueses e espanhóis. Pensou nisso porque àquela altura já nem sabia que idioma ele falava e a qual Deus deveria rogar. Virgen de los remédios ou Nossa Senhora Aparecida? Por via das dúvidas se amparou num terço pendurado sempre no pescoço.
    Não tinha sede mas tinha fome e queria poder ter o dinheiro da venda de uma cidade sagrada para comer tanto pão com peixe frito e vinho fosse possível . Mas nada tinha. Nem moedas, nem cantil, nem um embornal onde pudesse ter guardado um pedaço de carne seca. Era tudo um começo de começo.
    Foi assim que chegou a pensar que poderia fazer uma coisa grande. Uma coisa que faria bem a ele mesmo e que servisse para consolá-lo durante muitos anos quando estivesse na varanda envidraçada de um retiro para idosos contemplando cartas surradas de baralho e um gramado queimado pelo frio. Mas diante de tão pequenas possibilidades, solto ali na praia, acabou por resignar-se.
   Não deu mais do que cem passos quando viu um filhote de foca morto em sua frente. O bicho tinha os olhos tão abertos que parecia estar a enxergar o outro lado da vida marinha em oceanos nunca dantes navegados. A cor de seu pelo era curiosa. Um cinza esmaecido, quase ficando branco. Era um animal que não cheirava mal e estava plácido diante da morte prematura. Ele tocou a foquinha com seu pé direito descalço e sentiu a frieza salgada. Seguiu adiante e não viu mais o que parecia ser um farol. O que via agora parecia ser um velho e enorme navio encalhado numa curva da praia que dava a impressão de formar uma enseada. Podia notar que havia sim uma esfarrapada bandeira tremulando em algo que parecia um convés. Mas não sabia de que país vinha a gigantesca lata velha.
   Súbito se cansou , passou a mão no rosto e percebeu que tinha uma barba bem crescida o que dava conta de que era um naufrago de muitos dias. Passou incontáveis vezes a mão na barba e procurou sentir o cheiro. Cheirava a peixe fresco, azeitonas, talvez até um pouco de cravo da Índia, noz moscada e outras especiarias. Por onde teria passado até ser um naufragado?
   Suas largas calças brancas de algodão cru estavam estranhamente limpas para um homem que acordara na praia. Resolveu sujá-las e sentou-se na areia molhada a contemplar o horizonte que não se dobrava. De frente para o mar. À esquerda, à distância , o navio encarquilhado.À direita nada vezes nada. Súbito, também do nada, lembrou-se do seu nome, filiação, do seu emprego, das suas mulheres. Nada digno de nota. Assim deixou-se ficar. Esperando o dia acabar para viver a sensação inigualável de um pôr de sol num lugar nunca dantes imaginado.

*Ricardo Soares é escritor,diretor de tv e jornalista. Autor de sete livros , dirigiu 12 documentários, muitos programas de televisão e escreve às segundas e quintas no DOM

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