DEVO A ELES UM ROMANCE

Replico aqui a crônica da última  segunda- feira para o DOM TOTAL. (Leia aqui) . Não será o primeiro e nem o último texto sobre o valor da amizade. Mas é minha versão sobre o que representa a amizade a essa altura da vida. E a esses amigos fico devendo um romance...
DEVO A ELES UM ROMANCE
Éramos cinco, ficamos três. Não porque dois tivessem morrido ou se desgarrado do grupo, apenas se distanciaram. Um deles inclusive  foi morar em Brasília, o que é uma forma de solidão. Só sei que agora somos três e já faz tempo. Coisa de mais de 30 anos? Talvez sim, se bem que a amizade tem exatos 41 anos.
São os meus amigos mais antigos. Aqueles que vieram da adolescência vivida na presunção de uma futura notoriedade nossa quando seríamos escritores e dramaturgos talvez mundialmente famosos. Qual o que, muito embora nenhum de nós tenha sido uma decepção completa.
Um deles virou psicanalista. Não satisfeito, pois queria conhecer também a parte química da alma humana, virou médico e psiquiatra. Vocacionado desde sempre à tolerância e a entender as diferenças entre os seres humanos. Este é o meu amigo mais doce, mais sereno, mais plácido e educado.
O outro, jornalista e conhecedor de todos os meandros literários possíveis é o homem mais inteligente que conheci na vida. Hoje infelizmente emprestando seu gigantesco talento a uma revista nefasta. Racional sem ser frio, irônico sem ser maldoso, arguto sem deixar de ser doce é o introspectivo mais cheio de vida interior que já vi. Me lembra às vezes uma linda flor rara guardada numa estufa. Deveria ser muito mais visto e apreciado, mas se recolhe.
Marcamos vez ou outra jantares, onde colocamos a prosa em dia. Chamo de jantar "dos tiozinhos", geralmente em restaurantes desinteressantes, estratégia inteligente e inconsciente para mantermos o foco em nossa conversa e não no cardápio. Comemos qualquer coisa, pois queremos nos inteirar uns dos outros.
Na juventude tivemos e fizemos um grupo de poesia. Éramos cinco. Hoje os três recordam. O grupo não deu em nada, mas foi tudo para a gente um certo tempo. A bordo desse grupo organizamos saraus, chuvas poéticas, estandes para autores independentes em Bienais do Livro. Dizíamos que "a arte estava com indigestão" e lançamos duas antologias poéticas e cinco livros individuais em 1982. A última vez em que publiquei poesia e eles também.
De repente nossos filhos cresceram, agora esbarramos os 60 anos, os cabelos rarearam ou embranqueceram e olhamos para trás sempre com a eterna cumplicidade de amigos na chuva. Como eu, eles também colocaram muitos sonhos de moço nos embornais. São felizes diante das circunstâncias e hoje em dia me ajudam a ser feliz, pois ao estar com eles ponho para fora o que há de melhor em mim.
Quase nunca nossas mulheres estão conosco nesses encontros. Vai ver porque sabem da velha cumplicidade, vai ver porque sejam desimportantes no contextos desses encontros, visto que diz uma máxima que amores passam e os amigos ficam.
Sempre achei, eles também sempre acharam, que toda nossa história de juventude daria um livro curioso. E se um dia ele fosse escrito teria que ser por mim, decidiram eles. Justo eu que hoje me considero um enfadonho escritor bissexto que sempre justificou sua indisciplina, medos e falta de métodos com um "torvelinho" de desculpas.
Vai ver eu devo mesmo desculpas a esses meus amigos porque, pensando bem, nossa história daria um livro bacana. Datado, mas bacana. Mas, perdoem meus amigos, não sou capaz de escrevê-lo. Ando tão saturado de mim mesmo, tão enroscado no cordame do convés que tenho medo de que se for lançar uma âncora em direção aos mares profundos desse livro eu acabo por afundar junto.
Na verdade me vejo diante dos planos do passado como um absoluto fracassado. A literatura nunca se despregou de mim, mas eu nunca a abracei de verdade como ela merecia. Ela foi sempre a "regra três", um hobby mal largado, um estepe, uma espécie de confortável pano de chão para o qual eu corria e corro toda vez que sinto o meu coração e os meus pés muito frios. Ela foi uma espécie de amante antiga, com quem a gente sequer transa mais, mas sempre está ali para acolher e ouvir as nossas mazelas.
Nunca imaginei poder viver de literatura em um país onde quase ninguém vive de ficção. Mas imaginei que pudesse ter sido mais focado, disciplinado, mais regrado para tal mister. No entanto, estou aqui apenas esboçando uma crônica sobre a amizade. Talvez para dizer de outra forma para esses dois amigos que eu os amo mais do que qualquer livro que escrevi. E que, infelizmente, não tenho competência para escrever um romance sobre a nossa juventude. Contentem-se pois com o meu açúcar de diabético e com as mal traçadas linhas desse relato que se encerra com o mais fraterno dos fraternos abraços que eu possa lhes dar.

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