DISCOS VOADORES E ALTA QUILOMETRAGEM

      
   publicado originalmente no DOM TOTAL (clique aqui)

    O que sou agora é fruto do que fui hoje e do que fui ontem, a semana passada ou há muitos anos. Essa anárquica simbiose é o que me fascina e me dá vontade de contar. Misturar cenários, cidades e tempos. Sair da portaria daquele hotel que parece um canudo gigante, lá em São Bernardo do Campo, o Pampas Palace Hotel e poder na cena seguinte  tomar um banho nu em uma vereda na entrada da Serra do Roncador onde Maurinho, o guardião do lugar, me espera para dois dedos de prosa e uma sopa quente de feijão. 
      Anotei em um pedaço qualquer de um guardanapo manchado de manteiga a latitude e a longitude de Nova Xavantina por motivos que para mim mesmo não ficaram muito claros. Queria ir longe, longe demais e quando lá cheguei, com calor e reverberação do asfalto, me encostei numa modesta sorveteria, tomei três sorvetes de pequi e fiquei me perguntando se o “longe” era só aquilo... 
    Queria fugir de quaisquer referências, talvez me perder dentro de um grande cafezal ou avistar círculos de fogo dentro de alguma mata baixa. Toda cidade grande me cansa deveras meus leitores...Dirá o desavisado que estas minhas memórias, essas que estou a cozer, podem estar confusas por conta do sol quente que pode ter provocado alguma avaria no meu cérebro. Não é nada disso. Só estou mesmo é de comporta aberta para todas as lembranças . Sem censura, deixando tudo vir antes que os anos 70 virem apenas e tão somente uma reunião de belos livros de fotografia que embalam os feitos rebeldes para presente e nos apresentem como subprodutos de um tempo que ficou congelado e mais nada. Não me presto a esse papel  e muito daquele jovem embalado para presente está aqui, agora, a gastar caneta tentando explicar o que ainda parece inexplicável. Meu pai lia “Eram os Deuses Astronautas” e até hoje eu tenho certeza que vi ao lado dele e de um tio milico aposentado discos voadores na direção dos contrafortes da Serra da Mantiqueira, bem depois do rio Paraíba. Era uma noite quente e estávamos todos em um quintal em Caçapava, na rua Monteiro Lobato, com aqueles siriris  e vagalumes voando ao redor da gente. Como tanto o meu pai como o meu tio já morreram só eu estou por aqui para lhes garantir que o que vi não foi uma miragem. Mas creio que ninguém está lá muito interessado em ouvir essas histórias, muito menos escritas, porque as pessoas andam com uma preguiça danada de ler. Mas estou   aqui com segredos bobos e pouco sabidos. Na tola dúvida se os revelo ou não. Só eu estou aqui e percebo que as paredes do quarto estão precisando de uma boa pintura e minha vida de um revisão completa devido a já alta quilometragem.
* Ricardo Soares é escritor, roteirista, diretor de tv e jornalista. Dirigiu 12 documentários e publicou 8 livros, o mais recente "Amor de Mãe" pela editora Patuá.

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