PARA A ÁGUA VAMOS REGRESSAR

Por Ricardo Soares*
publicado originalmente no DOM TOTAL... (clique aqui)
    Estamos de volta marujo ao mesmo porto do qual saímos. Temos as costas queimadas de sol e as mãos cheias de calos de tanto puxarmos redes que nos deram peixes tão miúdos e inconsistentes. Alguns, muito coloridos, foram brindes divinos pinçados neste imenso aquário Atlântico que a muitos assustou e a outros tantos sepultou. 
    Estamos de volta marujo e fomos muito éticos. Não usamos arpões nem golpes sujos para retirar deste mar imenso coisas que devem lá permanecer. Vimos tantas auroras e poentes, tantas aparições inusitadas e fantasmas necrosados pelo tempo que por certo, agora em terra firme, não seremos os mesmos jamais. Estamos de volta marujo inebriados de marolas e de ondas, distantes dos enjoos que nunca nos assustaram, mirando ainda a cauda daquele tubarão branco que na verdade nunca quis nos matar. Queria apenas nos assustar e demarcar o seu território como as sereias que vimos de longe desencantadas que já estão de tantos fracassos humanos.
     Neste longo percurso aquático feito sem bússolas e ao sabor dos ventos vimos sete gaivotas que, sempre juntas, sobrevoavam nosso mísero barco anunciando equivocadas uma terra à vista que não existia. Gaivotas desorientadas, metáforas de nós mesmos, pássaros à deriva que se deixam levar pelos acontecimentos.
   Meu cabelo tem cheiro de areia, tenho cara de goiaba e meus dedos colam de tantos peixes crus que eu abri pelo caminho. Sinto o cru gosto deles em minha boca e lembro de você, marujo, rindo com seus dentes podres e bichados toda vez que eu cuspia as espinhas que me entalavam na garganta.  
    Examinamos juntos o horizonte e juntos tivemos maus presságios, mas é bom que se avise aos navegantes e leitores que os dragões do mar não mais existem e que os corsários agora se disfarçam sob outras bandeiras. Iludem-se os ingleses que imaginam ser o mar só deles. Mas o mar não é democrático, lembremo-nos. O mar é para poucos. Estamos de volta marujo e eu examino o convés de longe vendo jogado a um canto o lascado bule verde de louça barata que nos alegrou com tantos cafés ralos acalentados na espiriteira. Sonhávamos com pães de queijo e biscoitos de polvilho e queríamos o perfume de Iemanjá invadindo as nossas noites. Torcíamos para que este perfume inebriante entrasse por nossas guelras. Sim, de tanto tempo que estivemos no mar, criamos guelras e entendemos melhor o milagre dos peixes.
   Alguns remos se partiram de tanto que os batemos nas águas. E também lançamos, me lembro agora, tantas mensagens poéticas dentro de garrafas de cachaças que suponho que alguns destes versos tenham chegado às praias do Caribe colombiano. E ainda tínhamos força nas altas madrugadas, olhando aquele céu imenso e iluminado, para mentirmos muito sobre pescarias imaginárias e ocultarmos um do outro brilhos distantes que enxergávamos e não desvendávamos.
   Estamos de volta marujo e agora reze comigo porque este Deus barbudo que habita as águas nos tirou das mãos da morte uma meia dúzia de vezes. O mar é imenso como é imensa a loucura. O mar é denso como densas são nossas contradições embaçadas no manto do egoísmo, suor e náuseas. Não sei o que prego agora nesta cartilha obtusa, mas depois desta viagem virei um sujeito crédulo.
    Não saberei explicar nunca de onde surgiram em noite de lua rasante e mar alto todos aqueles ramalhetes de papoulas e gerânios e de onde vinham as vozes mansas que escutamos, afoitas por passarem recados que não entendíamos. Éramos frágeis e sentíamos jorros de sangue espesso chegarem aos nossos cérebros tamanho os sustos que passamos. É difícil imaginar que vivemos tudo isso e que estamos aqui vivos e inteiros. É difícil se certificar que o planeta na verdade é de quem entende de água. Um dia tudo isso será água e nós voltaremos a ela encharcados da terra em que vivemos e destruímos.
   Marujo, pelos anéis e pelo tridente de Netuno eu te garanto: o preceito bíblico está milenarmente equivocado. Na verdade onde se lê pó leia-se água. Da água viestes. Para a água regressarás.
Ricardo Soares é escritor. Publicou oito livros. O mais recente "Amor de mãe" pela editora Patuá. Escreve às segundas e quintas para o DOM TOTAL.

Comentários

Postagens mais visitadas